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Paulo Sérgio Rosseto

Poeta e Escritor


LIVROS PUBLICADOS:

O SOL DA DOR DA TERRA - 1981

MEMORINHA - POEMAS INFANTIS - 1982

ATO DE POEMA E UMA CANÇÃO - 1984

AMOROSIDADE - 1985

CRÔNICAS ABERTAS - Poemas - 2018

DOCES DOSES de POESIA - Aldravias - 2018

VERSOS de VIDRO e AREIA - 2019

POEMAS QUE VOCÊ FEZ PRA MIM - 2019

LÁ PELAS TANTAS DA VIDA - 2019

FAZENDA HAICAIS - 2020

ABELHINHA PEQUETELLA - 2020

POETA ENTRE COLUNAS - 2020

POEMAS QUE VOCÊ FEZ PRA MIM - Vol 2 - 2020

NAS ASAS DAS HORAS - 2020

BULBOS diVERSOS - 2021

SONETOS ESQUISITOS PARA NINAR MOSQUITOS - 2021

BORDEJAR - 2021

PLENO ESTADO DE POESIA - Poemas Reunidos Até Aqui - 2021

LÁ PELAS TANTAS DA VIDA - 2ª Edição - 2022

VÍVIDAS Noites Azuis - 2022

PRÉDICA DO APRENDIZ E DEMAIS FILOSOFICES - 2023

COLETÂNEA:

IMORTAIS IV - Academia de Letras do Brasil (ALB) - Ed. Alternativa - 2021

OS CORDÉIS DE CORDEIRO - Um Pra Cada Um - 2021























ADIVINHADOR


Soube que o poeta é um adivinhador do invisível
Revela um mundo que talvez nem há
Apalavra os suspiros os cheiros e as cores do ar
Desvenda mistérios que o olhar não alcança
Preconiza em versos
Fomenta a essência

Dizem que desvenda as facetas
Desafia o tempo que sempre tenta impactar
Solta as amarras díspares e os véus
E nos convida a enxergar além dos olhos seus

Mas o poeta retrata somente o que acontece
Por vezes apenas junta ingredientes
Faz as massas
Amassa-as

A poesia sim com precisa elegância as assa
E o coração se alimenta da saga
Que permanece

Todo o resto passa

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TODO AMOR


Assim quando escurece
É porque seu guardião juntando os dedos
Repousa o sol em suas mãos
E após algumas horas
Vai soltando as garras
E o lança de novo ao espaço
Para iluminar o firmamento

Se as tardes nos privam a luz intensa
As noites fazem parir auroras

Assim eu vou contando o tempo
Até me ir embora

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TRATADO SOBRE A AMIZADE


Por não haver receita
Nem fórmula pronta
Para amizade perfeita
Ser amigo é um perigo

Poderá virar vício
Até parecer permissivo
Tão saboroso estarmos juntos

Às vezes serei remissivo
Transparecerei insano
Imprevisível
Evasivo

- Coisas de humano
Mas amizade é isso

Amigo
Escolherei esses dias claros
E também os dias tristes
Para estar contigo

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POR ISSO TE AMO


A ponto de achar
Que não mereço
Por não caber em mim
Por ser assim imenso
Penso ser tão intenso
Que não seja meu esse amor

Mas ah que loucura pensar nisso
O amor não se mede
Por princípios

Por isso te amo
Desde o começo
Desde o início

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APENAS


Pensas que te escrevo
Imagino que me leias

Na verdade és tu quem me dita
Poemas
Poemas
E mais poemas!

Acredita
Eu te transcrevo
Apenas

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ADIANTE

Enquanto o sol foi nascendo
Vi pássaros cruzando perfilados
O tênue céu laranja

Voavam assobiando cantorias
Renovando os rumos
Refazendo os mistérios do dia

Lembram que dentro das noites
Toda luz se ajeita por maneiras diferentes
Até que amanhecesse e assim continua
Umas vidas descansam outras agitam
Enquanto haverá do que nos falte
Sempre existirá quem esbanja
Justamente porque passamos com os pássaros
Ou somos espaços por onde partem

A uns acordados há tantos dormindo
Tudo ecoa entre as memórias da gente
Nossos passos precisam  desenhado o adiante
Para continuarmos - ficando ou seguindo

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QUINTAIS

Em minha casa itinerante
As horas me passam soltas
Em arruaças constantes
Irrequietas feito aves
Revoam pelos ares a todo instante
Onde a imaginação peralta
Se faz presente

Coloridos e engraçados
Os derredores da minha casa
São de ideais e ideias
Há um verdadeiro viveiro de aeronaves
Chilreando pelos braços das árvores

Aconchegante é o lar que me abraça
Vivo em viajante estado de graça
Dando asas passarinhas
Aos quintais da minha mente

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PASSARÃO

As aguas por debaixo e sobre as pontes
As imagens refletidas nos espelhos
Os anos como se não fossem vividos antes
E não ousássemos nos imaginado mais velhos
Perdidos nas inconstâncias das vaidades

Todas as tristezas e alegrias
Além das delícias das idades
Passarão por aqueles que prometem
Amar eternamente

De tudo o que passamos e passaremos
Hão de permanecerem somente
Algumas partes

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PARA EVITAR PARTIR

Construa tua casa
Num lugar de bem saber
Para não precisar muros
Evita cercar escuros
Para nada reluzir

Erga paredes com silêncios
Nas janelas cortinas de mistérios
Para ninguém espiar teus hábitos

Por móveis usa os sonhos
Tecidos com fios de ilusão
Cada cômodo faz um encanto
Assim nada terá pressa em passar
Nem mesmo a sina

Não me ensina o endereço
Tenta morar oculto
Dentro das indizíveis paredes
Encontra a paz que almejar

Caso eu venha descobrir
Não me peça para entrar
Posso me acomodar
Posso não querer sair

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VARAIS

Fiz da poesia um varal
E nesse esticado arame ainda que farpado
Exponho ansiedades e dilemas
Gritos que se entrelaçam por palavras
Em versos sortidos

No varal dos sentidos
Pendo meus medos
Cada linha revela sentimentos

Os dilemas dançam em ventos diversos
Numa teia inconstante minha alma se expõe
Ansiedades despidas vulneráveis dispostas
Como roupas nas quais o tempo roça
Entre rimas e metáforas flanam embandeiram
Em velas presas pelos versos navegam passeiam

E assim nesse varal de emoções expostas
Entre lágrimas e sorrisos e até falácias
Minhas letras são compostas

Cada verso é um fio que sustenta a minha essência
A poesia é a janela da alma inquieta
O que me completa estendo no varal da vida
Não fosse assim nem seria poeta

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ENQUANTO TE PROCURO

Todavia essa alma minha
Aninha-me ao colo insípido da terra
E se faz de mim contumaz peregrino
Ela comigo pela terra peregrina

A minha alma apreenderá o infinito
Que ao contrário do chão frio barrento
Entre pedras arraigado ao solo
Entenderá que a carne deteriora e erra
Mas eu procuro-te agora enquanto pulsa
Pois é da terra que me vem o alimento
A persistente sobrevida dessa teimosia
Que é da terra que me vem em fantasia
No momento em que a alma distancia
Certezas de que serei terra evidente
E dúvidas se a alma também morre-me um dia

Por isso lanço as mãos em meus apelos
Como fosse um tango descuidado
Tocado de ouvidos mais estranhos
Bailando como se eterno seria

Eis o tanto que me apega as tantas alças
Se os meus lábios se iludem com falácias
Eu recolho-me à pequenez de criatura

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A FACE DO AMOR

Pensei ter visto a face do amor
Apenas onde morasse o beneplácito
Gravada nas estampas que gostasse
Onde houvesse a beleza da cor
Nos gestos plenos de felicidade
No apogeu da alegria sem maldades
Em botões e pétalas de rosas abertas
No acolhimento das bênçãos e orações
Na candura e inocência das verdades

Não
O amor mora também detrás do escuro
Debaixo da abrupta tempestade
Brota do absurdo cruel da dor
Reside nas facetas desprezíveis do cotidiano
Onde menos imaginamos há o amor

Na lágrima que cai em silêncio só
No abraço apertado que cura o aflito
No sorriso frágil diante da adversidade
No perdão que transcende vaidades

Revela-se entre os nós e entrelinhas da vida
Nos momentos que parecem fugir da medida
Habita nos gestos simples mais singelos
Nos olhares sinceros e profundos dos elos

Encontra morada no calor do abrigo
Na paciência que acalma conflitos
Na compreensão que brota do compartilhar
Na entrega e comunhão do perdoar

O amor não se limita a estampas perfeitas
Ele se desvela em todas as facetas feitas
Onde menos esperamos

O amor está presente no além do que amamos

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SEDE

Os meus olhos tem sede de horizontes
De imagens que ainda não vi
De poentes que ainda não vieram
Das manhãs que já vivi
Dos amores que me chegaram antes
Das tardes que se apagaram sem sentir

Meus olhos anseiam o desconhecido
Auroras de sonhos por nascer
A bruma dos segredos escondidos
Nos caminhos que estão por percorrer

Procuram nas linhas do destino
Encontros de almas que se entrelaçam
Histórias que esperam ser escritas
Em cada abraço e sorriso que enlaçam

Meus olhos são do tempo viajantes
Sedentos das inconstantes instâncias
Que voam além das fronteiras conhecidas
Buscando entre insights e disfarces
Respostas para perguntas incessantes

Meus olhos são buscadores de encantos
Desvendando segredos nos recantos
São testemunhas de lágrimas e sorrisos

Em sendo exploradores incansáveis
Desbravam o tempo sonhadores
Buscam na essência da vida cada instante

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LIBERDADE

No emaranhado de fios que nos prendem
Em meio amarras do viver
Emergem asas que nos pertencem
São respiros guardados que teimam em florescer
Liberdade de vasto horizonte
Que se agita no peito como pássaro cantor
Entre muros erguidos clama seu monte
Desfaz fronteiras semeia caminhos a percorrer

Não é só rompimento nem só voar
É a imensidão que nos invade vital
De um labirinto a desvendar

Liberdade das múltiplas faces a dançar entre limites
Desafiando prisões e o conformismo assim
Que ao abrir portas revela belezas

És suspiro na alma brisa na pele
És a fagulha que impele e acende a chama do ser
Nas escolhas que fazemos no que se revela
És o encontro conosco és o direito de ser
És tesouro impalpável que se sente e se vive
Mas não se pode prender

És o próprio pulsar o sopro invencível
O fio de esperança que nunca se rende

Que os passos sejam gritos de liberdade
Nossos versos sejam sopro de ar
Que a vida seja a busca incessante por verdade
Nesse eterno balanço entre o ser e o se encontrar

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SORRATEIRO

Dizem que o céu é o destino
De toda alma que se dá ao beijo
Mas se nossos lábios não se propõem tocar
Lança os teus olhos nos meus olhos
E beija-me de intenso olhar

O olhar tem essa densa força
De entender qualquer mistério
Desvendar a presença do óbvio
Inventar devaneios da língua
O que nem a boca consegue falar

Acolher anseios mesmo que proibidos
Enxergar a si mesmo no outro
Como num espelho sorrateiro

E se esse gosto de profano for etéreo
Todo o humano eximirá qualquer culpa
Donde flui enfim esse desejo tão divino
Em meio ao que houver em nós de verdadeiro

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NOTURNAS

A mais bela parte do dia é noite
De matiz preto e único
Que se parte esbranquiçada e láctea

A imensidão do escuro
Brinca de forma lúdica
Acendendo no firmamento
Se dividindo em auroras

Por isso a profusão das cores
Na vastidão do universo
A ilusão das passagens
A compilação dos mundos
As miragens

Nossos olhos não são noturnos
Carecemos da luz das alturas
Entre as negritudes lindas

Somos criaturas feitas de paisagens
Se a noite evapora nas horas
Também os dias claros vão embora

Eu não temo a efemeridade do tempo
De todas as visagens
Apenas não amar me apavora

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BAILARINA

Depois de brilhar no palco
Depois de dançar na chuva
Tanto pular calçadas
Tanto correr a rua

Pliés tendus jetes

De tanto saltar nos arcos
De tanto pisar a areia
Tanto saltar nas nuvens
Tanto ensaiar no espelho

Fondus adagios frapés

Sem sequer rasgar as sapatilhas
Sem sequer molhar as sapatilhas
Sem sequer sujar as sapatilhas
Minha bailarina tem os pés descalços
E dorme nos meus braços
Um sono tão profundo
Como se bailasse no espaço
E acordasse iluminada
Pelo holofote da lua

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MINHA SOLIDÃO

Minha solidão se prende a cidades diferentes
Que não pertencem a nenhum país
Nem nação nem continente

Minha solidão habita nuvens
Elevadas pelos ventos
Pintadas do branco em cinzas
Entravadas em julgamentos
Longe da contagem do tempo
Sem linguagem nem religiosidade nem argumentos

Não têm copas suas arvores
Não tem arvores nem há sonhos de subir por entre as folhas
Ir trepado pelos galhos atrás de frutos estranhos
Que dependuram no alto e caem quando maduros
Não tem pássaros repousando nem casas de marimbondos
Não tem formigas nem besouros flutuando pelo escuro

Minha solidão mantém
Portas atentas às esperas
Porem certas de que não vêm

Mas sou eu quem cerca em muros as beiras das minhas nuvens
Sou eu quem as seguro e as retém

Minha solidão é pavão com asas de olhos molhados
E pés sem chão

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NA COR DOS OLHOS DA GENTE

Mesmo sem sombras o oceano dissolve a luz
Sobre sobras que deixa transparecer

O restante guarda nas alcovas

Também ele é feito de assombros
Que soçobram ou encantam nossas vidas
Diante do mistério absoluto que prova
Na fluidez da solidão das ondas

Parece insensatez contumaz
Ocultar da face do mundo
Tesouros tão profundos

O oceano mente incontinente
Mas detém seus motivos e segredos
Quando desassombra nossas mágoas
Ignorando angústias e medos

Tão imenso quanto soberbo
O que o oceano esconde do horizonte
Revela-se na cor dos olhos da gente

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A VIDA NÃO ME PESA

Se a vida não me pesa tanto
Enquanto estou acordado
É que o mistério da noite
Calca-me o dorso que dorme
Para que a alma afugente
A lassidão vulnerável da carne

É ilusão que remoço e descanse
Estendido na cama inerte
Que revivo ou então envelheço
Enquanto durmo e não penso
Ou quando me torno reverso
Ausente da consciência

Sonho mesmo é recolhido
No silêncio da madrugada
Palavreando as esperas
Aguardando o sol que nasce
Igual surgi entre entranhas
Do amor que me fizeste

Esse corpo é mera carcaça
Amigo impessoal do espírito
Que tenta dar-me a imagem
De um vulto que desconheço
Do instrumento que preciso
Para escrever-lhe meus versos


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ETERNAMENTE

O violão que dorme no quarto
Pousado intacto sobre a cama
Teus dedos não conseguem fazer vibrar
- Engraçado
Ainda te sinto tocar!

As tuas musicas atravessam as paredes
E rompem o silêncio dos meus medos
Para poder te ouvir escutar os cantos
- Engraçado
Pareço te ouvir cantar!

Tantas guarânias e lá lá lás e os lero-leros
Das rimas apaixonantes sem compassos
Nos passos das valsas e boleros
- Engraçado
É como se te visse dançar!

Toca canta dança
Deixa tua arte explodir teus encantos
Como antigamente
Para que te ouça sinta e veja
Amar-nos eternamente!

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O GUARDIÃO

Eu fui guardião de um rei
Que eu mesmo inventei antes de crescer
E enquanto eu crescia meu monarca partia
Ampliando seu reino pela cercania

Conquistou outras terras
Ganhou tantas guerras
Domou bestas feras
Que as façanhas repercutiam
Repercutiam
Repercutiam

Foi então que me apaixonei
E todo o reino se enfraquecia e desfez
Pois enquanto ardia em paixão
Meu soberano fingia me desconhecer
Mas era eu quem não me conhecia

Somente quando a ilusão se ia
Voltava eu a ser escudeiro protetor
Das cidadelas que havia dentro do meu ser

Enfim eu nunca sabia se sofria ou não sofria
Por tanto amar o que não sei se amei

E se até ontem eu não sabia
Ainda hoje não mais saberia
Por onde andará meu rei

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CIO

Beira de rio costuma haver lugar macio
Onde a onda bate suave sem quebrar
Nem machucar o mato que margeia

É como se pedaços de agua pausassem da correria
E se deitassem na margem para descansar

As aguas que batem pelas beiradas
Brotam debaixo da saia das ondas
Que vazam do meio das pernas do rio
E seguem direto do rumo do leito
Do lado esquerdo ou direito das bordas
Sabedoras de jamais voltar

O rio entretanto alonga e alaga nas cheias
Endoidece que até perde o prumo
Quando vaza saltitante na corredeira
Depois novamente amansa o cio
E se transborda é de tanta história
Louco para contar ao mar

Toda essa agua que esguia passeia
Canta cantigas que somente escuta
Quem navega nos rios da vida
E mergulha na sorte de se deixa levar

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PARTES

Ao longo do dia divido-me em partes:
A parte que recolhe olhares e os reveste em cores
Outro tanto que reparte palavras para explicar-lhes
A soma que recobre sonhos e os acorda tarde
Uma enormidade que pretende tudo e do nada sabe
Um pouco que encoraja a voz a emular milagres
O muito que dilata o pouco ainda que desmanche
O mínimo que concilia a timidez à arte

Nas partes que reparto unifico-me transparente
Insigne como coleção de máximas ausentes
Significantes por não pertencerem mais ao choro

Tudo é feito com propriedade
Tantas partes dividem-me por motivos tantos
Ante a obviedade do nada que sangra ou arde

O que não faço é adormecer a sombra
Dos motivos óbvios a desconhecer
O que me fora dado sem que houvera lágrima
Pois somente assim me valoriza o todo

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FAGULHAS

Teu olhar sustenta os meus olhos
Na plenitude máxima e intensa da luz
Onde reverbera o som das esferas
Que circundam as fagulhas
Das densas intenções

Eu absorvo cada segredo que esse olhar me revela

Não é de solidão que sofro agora
Apenas aquieto as vontades e desperto a memória
Para lembrar-te tão prevista quanto bela

Hoje à tarde nossos olhos dançaram tão íntimos
Que incendiaram mútuos
Depois se perderam de vista

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JÁ ÉS TÃO QUERIDA!

Mesmo antes de nascer, já és tão querida,
Amada por pessoas que ansiosas te aguardam,
Recebes a vida destes que te acolhem com amor;
Iluminarás o sol com os sorrisos da infância
Alegrando nossos dias com a doçura da inocência.

Olhos brilhantes acenderão qual estrelas que
Lembrarão mil flores em jardins de primavera,
Irradiando a luz que contagia-nos ao teu redor.
Viveremos por ti, Maria Olívia Maria,
Inspirados no teu jeito meigo e encantador.
Amor puro e verdadeiro é o que trarás ao mundo!

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O FAZEDOR DE PALAVRAS

Disse-me uma vez o silêncio
Não haver função mais bela
Que a de fazedor de palavras


Faz palavra pra cantor
Palavra pra quem nada diz
Palavra de chamar amor
Palavra chula sem valha
Daquelas que oram e curam
Dessas palavras que choram
As ofensas das malditas
Palavras que não se falam

Vive pensamentando e ri
Da lavratura da ideia
Idealizando vocábulo
Dando voz ao tagarela
Torna sonoros fonemas
Dispõe os significados
Permitindo que se escreva
Imprima e comprima no peito
A palavra certa de agora

Minha língua é aprendiz
De toda palavra dita
Nos idiomas da terra


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ABRIGOS

Quando inventei pássaros
Aprendi a bater asas
Nascidas entre os dedos
Nas mãos postas em conchas
Em arremedos de ninhos

Ainda sem penas ensaiavam voos frágeis
Sem pudor dos próprios medos
Mesmo em ristes partiam contentes
Quando dobradas saiam confiantes
Quando ajuntadas voavam reunidas

Nos ritmos instantes
Alçavam das linhas aquecidas
Para pousos despreocupados
Por lugares que nem existiam

Minhas mãos envelhecidas
Vivem hoje mais prudentes
Por conter os dedos trêmulos
Ainda que já menos quentes
Entremeio aos perigos

E as tantas asas batidas
Retomam para seus berços
À procura de abrigos

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VONTADES

De tanto que a precisava livre
O menino não temia ser diferente

Cria poder
Envolver o mundo em versos
E desvendar-se depressa

Ela zombava
Dessa tolice sem limites
Mas se convencia
A atirar-se em seus braços
E o envolvia ardente

Se ontem
A poesia nasce e acontece
Hoje nem tudo o que escreve

Desfaz seus enganos

Mas enfim o convence
Que nenhum verso mais
Lhe pertence


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ROTINA

Todo dia recebo cartas
Dessas escritas à mão
Trazidas pelos correios
Entregues pelo carteiro
Em meu secreto endereço
Onde a caligrafia erra o compasso
Entre o grafado e o que o olho
Acha que leio

Dessas tão desenhadas
Que trazem notícias e revelam segredos
Em que a gente narra coragem
Omite os medos
Que traduzem fantasmas
Ansiedades
Paixão
Escritas em papel sem pautas
Bordadas de ternura
Perfumadas

Quem me escreve é a saudade
Mantenho-as guardadas
E guardadas estão


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A BELEZA

Estou convicto de que as flores
Olham-me fixamente nos olhos

Seus espíritos abandonam canteiros
Invadem minhas meninas
E passeiam pelas pupilas
Enovelam-se no invólucro da retina
Até que a emoção
Domina-me a alma

As flores ainda que impessoais
Determinam minha tola forma
De entender a beleza do olhar

E o teu olhar me fascina!

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MELODIA

Em volta da casa bege

Havia uma fortaleza na terra crua

De um tempo que jamais volta

Nada de asfalto nem calçada e cimento

No máximo um caminhamento

Aproveitado do levadiço das pedras

De musgo verde embrenhado nas gretas

Sem muro nem cerca nem sarjetas

Onde a poeira vermelha e fina ardia

Por todo lado havia jardins

E canteiros e mais canteiros de jasmins

Que floriam nossos olhos de areia

Por entre nós a infância e as horas

Corriam naquelas ruas abertas

Depois conosco dormiam cheirosas

E novamente voltavam despertas

Para nova sessão de cinema

Até que um dia

A estrela cansou de cantar

Como encerram atriz e cantor

Como terminam cena e melodia

Ainda ouço sua voz amena e macia

Quarando os panos da barbearia:

"Oh oh oh filme triste que me fez chorar"


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DIÁLOGO ENTRE RAIMUNDO E JOSÉ

Saíste a passear sozinho no terno negro da noite
Encontrei-te cercado de anjos de branco e gravata vinho
Deitado no colo da morte entre folhas verdes de acácia
Pousado à sombra dos galhos sereno qual passarinho
Sorrindo igual ao menino que olhando a nuvem passar
Aguarda que ela volte trazendo notícias doces do mar
- Não fora a própria morte
Cerceando-te o semblante
Quem ousara te levar? –pergunta José a Raimundo

A morte é a derradeira parte a saber da nossa fé
Ela assusta quem não crê quem nada fez por deixar
Intimida por ser vã senil indiferente vilã
Avilta a vida da gente vilipendia por ser incerta
Desconserta arrebenta esfria
Depois damos conta que existe
Tão mágico quanto nascer é o gesto de não mais voltar
- Sabe a morte nada mais é
Senão o triste vestir
Do avesso do que nos cabe – pondera Raimundo a José

E assim seguiram levados
Falando José a Raimundo dizendo Raimundo a José
Deixando-nos chorosos calados
Sem muito ou nada a entender
Porém resignados porque a morte descansa quem morre
Ainda que nos faça sofrer


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EMOÇÕES

Jamais vi minha mãe chorar
Nem de tristeza nem de alegrias
Sabíamos que soluçava escondida
Como se escondendo emoções
Sofrer nos poupasse a vida

Às vezes não queria a noite
Às vezes rezava para o sol não vir
Por vezes desejava que ficássemos
Por outras sonhava ela em partir
Mas os seus olhos miúdos
Pouco dormiam fechados
Por medo de derramarem aguados
Os rios que ali dentro corriam

Ela ensinou-me a remoer calado
Os sentimentos da poesia

Mas os aboios diversos
Que se escancaram em cantorias
Estes são espelhos do meu pai


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NINHOS

Meu poema desavisado
Caiu nas graças do teu olhar
Num ímpeto balbuciado
Entre teus lábios se fez cantar

Depois de então aninhado
Aquietou-se nalgum lugar

Enquanto cisco saudades
Vasculhando velhos ninhos
Para que outros versos nasçam
O passado assa meu peito
Como se essa ausência tua
Sentasse nua ao meu lado

Porquanto amálgama o tempo
Nos tantos versos que faço
Se não perdurar sejam límpidos
E sob a graça da tua face
Minha arte imersa em bálsamo

Entardeça de luz teu olhar

Que este apaixonado poema
Depois de então declamado
Durma guardado no teu sonhar

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CALMO

Sou hoje cais quieto e calmo

À espera de barco para atracar

Mas já fui porto inconformado

Querendo ser barco e então zarpar

Singrar as ondas por entre as águas

Longe das margens ir navegar

Por entre as águas longe das margens

Onde o horizonte desprende o mar

E o mar revolto surpreende as pedras

E a névoa densa revela o cais

Hoje sou porto deserto e calmo

Esperando barco para abraçar

Mas já fui vento aventureiro

Enchendo as velas de algum veleiro

Fazendo a farra do timoneiro

Ventando livre sem preocupar

Velando cascos por sobre as águas

Desafiando sol e luar

Onde a saudade revela lágrima

De água salgada que enche o mar

E se hoje ainda me vejo margem

Braço de arrasto guia de cais

Logo não mais haverá viagem

Apenas vagas por sobre o mar

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BARULHOS

Ao contrário do que pareça

O grito vem dos silêncios

No anverso dos trovões

Qualquer estrondo para que zoe

E pulse no derredor

Ainda que às demandas pertença

Soe suas confidências

Será enganoso o pavor

Muitas vezes leio-te ao olhar

Sem nada entender dos teus olhos

Muitas vezes escrevo teus lábios

Sem nunca descrever os sussurros

Muitas vezes te escuto tão perto

Que não sei compreender teus apelos

Mesmo que me venham ácidos

Ou suaves como gostaria

Se o amor estivera inquieto

Busca-o na ilusão dos barulhos

E ame antes que acalmaria

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VERSERGIANDO

Aquele anjo santo que nos poda e apara
Que do ventre escuro nos arranca e separa
Ergueu-me nas alturas olhando minha cara
À espera de um susto grunhido do sopro
Mandou-me ordinário aprender a vida
Após a experiência do primeiro choro

Saí versejando atônito ávido mundo afora
Insólito caminheiro garimpando auroras
Sorrindo do destino no balançar das horas
Zombando displicente das farsas da morte
Menino esbaforido nas paixões da arte
Versergiando sonhos como faço agora

Eis que me vem o tempo sereno e sensato
A aquietar-me o ímpeto e reestudar meus danos
Debulhando a mente em detrimento a sorte
Pelo passar certeiro do vento dos anos
Recomenda ao anjo este apressado insano
- Esquiva este torto dos teus doidos planos!

Apiedado o anjo olha-me profano
Com as mãos repletas de sessenta outonos
Diz que irá pensar se vale a ousadia
Em dar-me mais um tempo a encantar meus dias
Que ao final das contas somarão aos sonhos
Que um poeta vive ao escrever poesias

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O QUE IMPORTA


Meu poema rodopia à tua volta
Feito vespa que cerceia víscera
Pousa versos nas tuas entranhas
Depois voa por estranhas vias

Meu vício oposto ao lado de fora
Mora no avesso da imagem aparente
Escondido no cerne visceral
Que jamais me questiona ou surpreende
Se resido em caverna distante
Trancafiado em quieta brandura
Ou jogado na inconsistente aventura
Revolto e tolo e todo sujo de poesia
Sem saber se sou destino final do fruto
Ou amargor de semente tardia

O que importa é que adocicados
Os meus versos voem à tua volta
Feito abelhas em porta de colmeia
Leem poemas em tua boca
E retornem plenos de magia

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TAMBOREIRO

Eis que inimigos disparam armas e bombas
Para ferir e matar nossos e seus
Outros entretanto batem tambores e ganzás
Para alegrar a vida e entreter-nos

Ora bombas e armas por vezes não ferem
Tanto quanto ressoam os sons dos bumbos
Quando estrondam tiros de emoções
Nos palcos corações dos mundos
Quanto ensandecem e máscaras caem
E os cantos nos impulsos invadem trincheiras
Entoam abrangentes e destroem muros

A música vence as guerras com seus ritmos
Quem se lança e balança e irrequieto dança
Faz nos sons da luta sua exalta valsa
Alcançada por motivos íntimos
Estilhaços que rechaçam ócio
A dor desdita tão torpe logo passa

A martelar tambores é preciso força
Amar para mirar baquetas laminar a pele
Mesmo que fuzis firam as mãos do tamboreiro
Importar-se com quem morra bailando e ouça
Ou então lascivo de contentamento se fira

Para apertar gatilhos no entanto
Basta propositalmente se armar de ódio
E extenuar a ira

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OCEANOS

Navegaria rebuscando sentimentos
Feito punhados de mim em cada um
Nos vastos oceanos dos argumentos

Costuraria consentidas formas de sentir
Consentiria emoções se misturarem ao sal
Até morreria ao remar se não souber dissuadir

Dissimularia pelos caminhos abruptos do mar
Onde se formam insanas vagas de partir ou voltar
Ciente que razões e palavras hão de advir

Empreenderia com os erros nas marés
Nos tantos e inconsequentes remansos no peito
Que me tornam menos entendedor de mim no revés

Mas o tempo me dá qualquer coisa de aprendiz
E reconforta reparador por quanto faz e diz a dor
Ainda antes do acerto da hora em que me for

Sei que irei apear nalgum cais desse mar revolto
Onde o litoral norteia com alguma luz de farol
Por isso não chora – qualquer hora volto!

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DUALIDADES

Se fogo e mar não se abraçassem nunca
Nunca haveria o divino dom de arder
Jamais a chama do enluarar seria mágico
Em vão seria cada entardecer

Para que manhãs se os dias não viessem
Rodopiando entre certezas e apelos
Afagando sonhos recompondo o corpo
Na insistência do tempo sem percebê-lo

Para que passado se não surgissem histórias
E nem descansada a memoria para novas vindas
Nem a doçura dos imponderáveis amores
Motivos tantos para os reencontros da vida

Para que sentidos se não sentíssemos leveza
E não pudéssemos palpar o coração um do outro
Nem provar das delícias da pureza
De um abraço amigo ou de um sorriso tolo

Quiçá não perdêssemos jamais a nudez da alma
Esta que permeia o verbo e ilumina a fronte
E possibilita alinhavar entre a fartura e a ausência
A branda veste que nos reveste de esperança

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ÓCIO


Ali fora da casa
Há uma arvore sem galhas
Uma rosa sem pétalas

E uma abelha sem asas
Pareço aqui na mordaça
Delirando sozinho

E o tempo passa
Enquanto passo o tempo
O vidro embaça
Com o nariz na vidraça
Meço assim em migalhas
A vida do vizinho



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DO OUTRO LADO DA CAMA

Achei que houvera saído
Desistido do tempo da calma
Partido sem rumo buscando
Deitar-me do outro lado da cama

Desperto
Hoje é domingo
Vejo você ali dormindo
Não pude te amar mais cedo
Apesar de perto

É como nem houvesse
Ambos teremos tarde
Antes tivemos cedo
Há o auge da hora
Passado e futuro

Tanto faz claro ou escuro
Eu só creio no agora
Já não tenho medo

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TODO MUNDO CHORA

Quando um sorriso ascende dos lábios
O desenho liso dá ao entorno da boca
A doce moldura do beijo aguardado

Abrem-se em farto riso e escancaram
As alegrias por onde brotam solfejos
O dom dos sons mais puros da fala
O ar da vida que gargalha solto
A beleza leve que em si exalta

Mas se o desespero nos banha a face
E a língua lambe o gosto da lágrima
Os lábios provam o sal do amargo
O rosto inteiro serena denso
Intensos laços se desamarram

Do revés do grito aos tenros sussurros
Donde a língua entremeio tagarela farfalha
Perde-se nessa fornalha pudica e louca
A angústia do tempo na expressão das horas

Do gozo ao desdém o mundo inteiro ri
De contentamento ou dor todo mundo chora

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A VERDADEIRA MÚSICA

A verdadeira música ninguém ouve
Ela não é audível aos tímpanos
Não fere martelos
Nem brota dos instrumentos
Não ruge nos diafragmas

São as loucuras o que cantamos
Propaladas no sopro dos lábios
Nos dedos inquietos dançantes
Entre os hiatos cravados no momento
Bailando nos furos das flautas

Tantos sons pairam ao redor em movimento
Como pétalas em notas falsas
E por onde há fugas fogem espertas
Diluem formosas enquanto outras surgem
Entorno dos ritmos para que aflorem

Nós nos enganamos adivinhando-as
Compomos sinfonias e canções
Entoamos somente o que nos encanta
Melodias insensatas decompostas
Enquanto achamos nos tocam os sentimentos

A verdadeira música ninguém canta
Floresce nas árias das razões e sai
E como loucamente não se toca
Nem permanece escrita em pautas
Vem dos silêncios do nada e calada esvai

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LONGE DA MORTE

Escrevo para que não morram as letras
Nem as andorinhas! Ambas tão precisas

Das aves para traduzir os sentidos
Das palavras que não esvoacem sozinhas
Às vésperas do poeta reuni-las

Se descuida voam sem caminho
E o céu é tão vasto tão vasto que o verso
Se não lido esmaece descabido
Do lado de fora do ninho

O poema é melhor mais tarde
Na garganta da noite
Quando precede ao vinho

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SOLITUDE

A roupa nua abatida e livre de mim pelos cantos
Exibe o amarroto que me toma de assalto
Adoro esse tato cúmplice entre a pele e a brisa
No frescor das sombras da casa vazia e aberta
Que desperta inteira em mim e nem me avisa
Da cama para a rede é questão de um salto

É como se meus olhos pousassem nas janelas
E deles desprendessem olhares tão mansos
Que me excita e efervesce a regência de estar só
E aninhassem no meu entorno todos os pássaros
Enxergando-me unicamente através dos sonhos
A beleza da alma que me alisa cada poro exposto

Amo minha própria companhia feita dessa quietude
Os sais os cheiros o arrepio ligeiro que advém e esvai
As singelezas macias feitas de sinuosas ânsias
Abundâncias tão sublimes de silêncio enfeitadas
A leveza dos desejos borbulhantes na sede
Tomando de fome a plenitude dos meus atos

Mesmo teu rosto colado aqui não estando
Como flanam minhas mãos à procura das tuas
Extraio além de toda essa deserta grandeza
A forma do que face a face enfim não aparece
Não - minhas ausências não me causam medos
E o que me ensimesma é o que me desfalece

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POEMAS

Achei que a linguagem dos anjos fosse toda rimada
Que traduzissem seus ditos pelo universo
Através dos insanos devaneios dos poetas

Os pecados mais tenros as rimas mais ricas
Pensamentos pretensos de formas bonitas
Inspirados a ouvidos atentos e a almas seletas

Também coisas vãs como fios de cabelos
Lembranças saudade dos enamorados
Um simples passeio sob o claro da aurora
As pétalas caídas na tarde chuvosa
Um beijo na testa o olhar de relance
Apertos de mãos suspiros abraços
Coisas tolas assim qual a voz embargada
Seriam angelicais delícias feitas do nada

Mas os poemas nascem e se encaixam
Na íntima flor dos nossos sonhos
A poesia não vem dos anjos
Eles apenas as guardam de forma delicada
Para que sejam sempre amadas

Por isso parte de mim quando escrevente
Torna-me lento e desorienta por qualquer dilema
A outra metade não diferente mas desatenta
Tola se dilacera sob forma de poema

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DISFARCE

Ainda que teus pés disfarcem e sigam
Do lado oposto por onde pretenso passo
O vento me diz dos vestígios dos teus passos
Antes que as ondas debulhem teus rastros

Ainda que mergulhes nas profundas aguas
Entre as correntezas brutas das marés altas
Longe de mim e por onde jamais alcanço
A brisa me traz teu cheiro e salga meus lábios

Enquanto imaginas que não te penso nem vejo
Meu desejo te acorda secretamente cedo
Nos pensamentos em que te imagino e beijo

Enquanto reclamo tua ausência dos meus braços
Antes que o sol alcance os tenros raios de seu lume
Sorrateiro te procuro não te acho mas disfarço

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NÃO TEM DONO O AMOR

Não tem dono o amor
Nem terá
Não é mera propriedade amar

O que se sabe do amor é tão pouco
Que por mais que se ame tanto
Nunca há de ser muito
Nem tampouco menos
O quanto necessário será

Mas há essa voracidade equívoca de posse
De quem pretende cuidar como fosse
Seu sua ou sei lá
Ah isso é parte do ser que se imagina dono
Mas que na verdade tolo
Pouco tem e nada além oferece

O amor é mais que um pertence
É a essência no outro sem abandonar a si
É indefinir-se para complementar
Esse dom tão soberano

De fato o amor não tem dono
Nem terá
Mas a maior propriedade é amar

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INDULGÊNCIA

Não está no pó
Nas cinzas
O teu valor

Teu valor não mora na vulga matéria que se desfaz
Nem no produto que se compõe risível
No entorno das tuas razões
O valor que tu tens
Mora num lugar visível aos espíritos que te cercam
Longe dos bens passageiros
Para que não se percam
Na geleira das tuas inseguras mãos 

Nenhuma matéria perpetua
Nem perpétua é a sabedoria
Que se converte na tua frágil figura

Se te banhas o corpo nestas águas puras
Lava de verdade a alma
Criatura

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POEMA PARA CERTA FAIXA DE PEDESTRES

A tua palidez exacerbada
Não é só falta de tinta
Afinal hoje você foi repintada
Do vermelho sangue escorrido
Ao longo das margens da estrada

Quem retirou a cor do teu desenho
Não foi o excesso de rodas
Nem solas de sandálias pisadas
E sim o tempo que te expõe pelada
Invisível
Crua
Fria sobre o asfalto deitada
Esquecida
Abandonada
Como as demais desta cidade

Piedade
Tende veloz piedade pois
Destas tantas faixas seminuas
Praticamente apagadas!

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WHATSAPP PARA RAIMUNDO

Sinto-me no direito
De sentir saudade tua
Talvez você até riria do que digo
Mas creio que assim também seria
Se acontecesse antes comigo

Lógico andamos tanto juntos pelas ruas
Trocamos livros discutindo literatura
Admirando ideias saudando os personagens
Que a janela dos sonhos nos impunha
Fotografamos a vida alheia dos corais
Como se estampássemos em revistas e jornais
As notícias que nas bancas depois você vendia

Confidenciávamos nada de nada
Apenas para demarcar a confiança que nos unia

Pois é esse direito de ausência lhe confesso
É sobretudo simples profissão de fé
Assim me despeço
Até!

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DORES

Não desejo que leves
Nem retires as dores destas linhas
Segue com as tuas
Bem mais leves que as minhas

Dor vem do repente
Surge perfeita na medida densa
Da magnitude de quem a sente

Não aparenta nem ostenta
Quem se ilude ou pensa
Que a suporta ou divide
Dolorir-se entre o alívio e a pena

Entretanto admito que sintas
Que roubo tuas dores mesquinhas
Para torna-las amenas
Sobre teus ombros doídos

Segue então com as que te restarem
Certamente mais brandas
Quão as minhas

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A CANTIGA QUE ENCANTA

Ouça que há por todo canto
O entoar de um cântico que os anjos
Também desejariam cantar

É essa a cantiga que encanta
Enquanto os dias seguem tantos
E os anos passam silenciosos à frente
Demarcando o tempo vivente
Toda vez que em nós aniversariam

Ouça que presenteamos nesse canto
Desejosos de que os sonhos sejam fartos
E a vida repleta e tanta
De amores máximos enquanto
O universo observa em burburinho
A mística arte que celebra
A sabida certeza do porvir

E assim brindamos juntos
Para que o abraço além de súbito seja pleno
E a sorte que tanto beija a fronte
Continue infinda e serena
Dando-nos por realeza
A sábia beleza do privilégio de existir

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POEMA TORTO

Abro um poema torto
Já não me importam as sentenças
Cozinhando palavras incabíveis
Embaralhando estrofes desconexas
Fazendo desfeitas entre as letras
Pelas cabeças

Eu sempre tão zeloso com as rimas
Que no espaço se ajeitam incólumes
Não entendia porque se desalentam
Desse jeito incerto
Quando a ideia torna o ágil diferente
Do sopro de realidade das cismas

Serão os olhos que não leem direito
Seriam os pensamentos imperfeitos
Os caminhos estreitos
Ou o que se decompôs transigente?

Completem-se os dilemas
Se do poeta devem estar rindo à toa
Por seus indecifráveis poemas loucos
O livro poderá ser ainda mais doido
Se ao abri-lo existir um risco apenas

O de ainda assim a arte sobrevir
No entanto eu
Talvez morto

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ANSEIOS

Detrás da porta há uma casa inteira à espera
Como se os cômodos deixassem seus afazeres
E se aninhassem sobre as paredes debaixo das telhas
Para assistirem tua chegada depois de um dia ausente

A sala reconhece os teus passos tão mansos
O quarto aquece tua cama e o travesseiro
Da cozinha louças e talheres sobre a mesa acenam
Entre a fome intensa e o desejo do que vier primeiro

Tu passas entretanto levemente ocupando espaços
Desfazendo das roupas pelas pernas pelos braços
Livrando-se do que já lhe sucumbe ao cansaço

Apenas uma ideia fixa te desnuda o corpo inteiro
Que te abraça a alma perfuma e te acende anseios:
Perder-se em sonhos debaixo do chuveiro

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MORENICES

O ardor te adorna a meiguice
Ele expõe tua beleza em nuvens alvas
Recobre de assomos transparências e nuanças
O que em ti arrepia e intensivamente pulsa

Em névoas brancas te envolve
Como se estrelas e miçangas espalhasse
Realçando tua face e teus enlaces
Entrecortando as linhas das lisas alças
Da blusa que te avoluma o colo enfeita e veste

Chuleia barras e dobras ágeis
Mansas frágeis fáceis no teu espanto
Sustentando aos ombros entre as alças
Perdendo-se por entre as ancas
Despertando os ventos
Nos alvoroços das tuas andanças

O torpor te assanha e acende a alma
Colore com nuvens ralas desejosas cinzas
O que estava calma te acelera os sonhos
E tu te assanhas inevitável feminina

Amo estas tuas brandas reticências
Reveladas em tua morenice acesa de menina
Como fossem brasas em avermelhadas ânsias

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PELAS PALAVRAS

Falávamos de vinhos
E deu-se a penumbra
Porque advinha e vagarosa na excelsa hora
Veio a língua da noite ao esvair o dia

Falávamos de rótulos e rolhas e amenidades
Da graça das bolhas que dançam nas pirambeiras
Na borda das garrafas que embalam os cachos
Que riem enquanto os olhos tremem e viajam
Como se as mãos segurassem pela base
As finas taças dos cristais curvos que no após silenciam

Assim falamos de vinhos entremeio aos fachos
E de qualquer rua nos vinha o frescor das vinhas
Brilhando silhuetas entre as parreiras e a poesia
Da vivacidade das uvas desde a Cicília à Bahia
Do doce recheio da pele entre a carne e a semente
Do cheiro indecente da chuva que impõe acidez a terra
E me põe bobo e ébrio enquanto tua face acalma e gira

Já não posso com as palavras elas andam o mundo
Nelas a minha alma fala esvoaça flana flutua
Nem sei beber sem brindar-te e à lua

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SONHOS

Não há sonho ao acaso e caso sonhe
Deixe que o sono te arrebanhe de realidades
Enquanto voa teu imaginário
Segue dormindo entre os teus cabelos soltos
No macio travesseiro que te apara a alma
Sobre a fronha branca dos desejos
Instigando as tuas vontades

Sonos e sonhos nada mais são senão acordes
Desta cantata que orquestra teu inconsciente
Ainda que acordada sonhes com o pressuposto
Supostamente estarão em ti todas as formas
Inclusive o que em ti deveras possa estar ausente

Sorria por saber que sonhara
E ao lembrar-se do sonho que te ateve
Ria impetuosa no contentamento
De contar a quem te encontrar sorridente
O quanto prazeroso essa magia fora

Depois na solidão das tuas horas
Reescreve as inquietudes que te farfalham
E se alguma saudade te omite as vertentes
Mesmo que a teimosa realidade te silencie
Acorda e segue altiva sonhando vida afora

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REENCONTROS

Vestidos dos melhores sorrisos
E adornados por altivos olhares
Viemos e houve abraços

Chegamos trazendo lembranças nos passos
Nas mãos e no silêncio entre as conversas

Às avessas o tempo ali não havia estado
Ele apenas permanecera em desenho
Como perduram os laços
Que se refazem nos reencontros cruzados
Até percebêssemos estávamos prontos
Antes que fôssemos para algum lado

Nossas nuas faces mostravam
Que a brisa mistura os perfumes
Que os lábios unificam sabores
E as razões se perdem de amores
Sem importar-se por onde andamos
Para outros tantos que adviriam

Nossas horas passaram afoitas
E ríamos todos enquanto iam
Porque assim a vida é feita

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TEU PERFUME

Teu perfume te faz redoma
Baila em teu entorno delicadamente
Sai à tua frente volátil enunciando teus passos

Perde-se intenso pelos rastros
Reflui onde flutuam os pássaros
Caminha ao que teu pensar esvai
Brinda secreto aveludando as cores
Decifra-te a quem te ver passar

Teu perfume te põe perfeita
Ele se deita e faz de cama teu altar
Descola-se do teu colo em suavidades tantas
Íntimas cheirosas faces quando espalha pétalas
Pela pele entre o pelo e o poro a te arrepiar

Teu perfume aporta-se sem tomar formas
Em rimas soltas porém nada santas
E o tempo louco roubando-te os cheiros
Guarda-te em tão frágeis frascos feito poemas
Tua poesia farta a me perfumar

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GAL ENLUARADA

Por ela enamorando a cidade
Aguardava-a de garrafa aberta
Descalça na calçada da rua
Surgir na janela da esquina

Trazia perfumes de nuvens
Entre as melodias do vento
Voraz cheiro de maresia
Enquanto a maré insensata
Travessa revolta inconstante
Vazava e a seu tempo subia

Davam-me nós de tempestade
Destes que suplicam por colo
Onde os raios fugidios
Estrondam e se jogam ao solo
Feito birrenta menina
Trinando por pura arredia

E após os agueiros rebeldes
Em horas incertas das noites
Sedutora acesa ela vinha
Revestida de penumbra e sorte
Banhar-se inteira em meu vinho
Enquanto a cidade dormia

E de novo ao encher minha taça
Sua voz será sempre um abrigo
Tombando de ansiedade e graça
Enluarada se deita comigo

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FÁBULA

Ardido do sol
O menino pergunta a seu mestre
A razão dessa alva espuma
Retrair-se quieta e serena
Sem dizer para a próxima vaga
Cuja onda virá zombeteira
Que ao lamber o lábio da orla
Sentirá na garganta e na língua
Um mesmo gosto de sal

O poeta então pede ao moço
Que não ouça as firulas do mar
Quando atira em ondas revoltas
Suas sobras sobre a areia indefesa

O mar também é mera presa
Das correntes que os ventos lhe movem
Da lua que suplicia as marés
Na ilusão de crescer e vazar

Sobe pois tua escada aguardada
Deixa aquietarem-se as tuas águas
Segue e quando se ver lá do alto
Talvez poderás compreender
Que espumas ondas e vagas
Nada são senão as arestas do tempo
Empreendendo razões para amar

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ESSE OUTRO CANTO

Os berros do poder vão silenciando
Zunindo mais abaixo enquanto o soluço passa
As línguas desinflamando no lamber dos dentes
Os lábios contem escapar os hálitos imprudentes

Os módulos mastigando números involuntariamente
Ainda remoem e respingam e babam na grama verde
Porquanto quem dormia espreguiça e desamarra
As vozes ficam amenas no passar das horas

Talvez rearmem e uma ou outra rês desgarre
Mas a aurora traz de volta o perfume da democracia
Quem sabe a nação se torne mais país um dia 

É preciso matar a fome e saciar a sede
Por isso é que esse outro canto renovando entoa
Aquilo que o sonho de um novo tempo pede

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TRANSPARENTE

Ela veste branco o encanto
Num dia comum de primavera
Quando vão ao mar todos os barcos

Ela veste branco gelo em neve
Enquanto deixa que a espuma enlace
Na bainha de suas vestes e alinhave

Ela veste branco o contorno magenta
Porque sabe que a alva nuvem
Inveja de brandura a sua vestimenta

Sequer um dia não houvera
Em que branco ela vestisse um pigmento
Sem turvar de claro o transparente

Ela sabe dos ardores da agulha
Que cose o manto de seu vestido branco
E de onde o fio da fina linha lhe advém

Só eu não sei do que me experimenta
Revoar seus brancos é despir meus panos
Como não houvesse mais cores nem ninguém

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MANIAS

Quando menino
Eu roubava os jardins nas primaveras
E distribuía rosas e mais rosas ornando janelas
Olhando feliz as surpresas nos vitrais
Pelos outonos colhia tangerinas
Dos galhos arcados
Sobre os muros dos quintais

E as entregava abertas aos pardais
Que saboreavam cada uma delas
Entre invernos entremeio a temporais
Eu surrupiava as madrugadas dos ventos
E contemplava os silêncios com cantigas singelas
Consolando as invisíveis estrelas
Que me aqueciam em tão ímpares momentos

E quando vinha o verão
Tomava os raiozinhos do sol que das ruas restavam
E iluminava as calçadas de todas elas
Para que as formigas passassem em procissão
Entremeio às roupas estendidas nos varais
E fossem solícitas entre as orquídeas descansar

Hoje me aproprio das palavras
Entre tolices e manias faço versos pra te dar
De qualquer forma passo a vida a poemar

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OCULTO

Sorri
Ou gargalhe se preferir
E que teu sorriso tenha qualquer cor ímpar
Aliás que irradie todas elas de forma contumaz
E assim e sempre que pudermos ouvir
Em qualquer distância do mundo
O gostoso zunir nos lábios do teu riso talvez oculto
Nos poremos mudos a te imaginar sorrir

E ainda que mostres detrás da brandura dos olhos alvos
Um olhar disperso ou aflito buscando lógicas
Tua face disfarçando tristezas como fossem vultos
Sorri
Desvestirás a integridade dos nossos lábios
E parva e viandante te fartarás em si

Teu rosto dar-se-á de enlace astuto
E ainda que a voz mascare na remissão do sentir
Revelarás o sentido manso do quanto é puro e nobre
O singelo fato de então sorrir

Sorri

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LUGAR NENHUM

Aprendi a ir a lugar nenhum
Ainda assim fui rumando sem esboço
Como não fosse um paradoxo
Nem tivesse vindo do paraíso
Ou de alguma espécie de fosso
Presencio pelos cantos como posso

Sou molécula de agua ou sombra
Caminho andarilho trôpego
Sobre o belo e o destroço
E se porventura tropeço
Contorno ou supero
Jamais esmoreço ao entrevero
Ou torno-me robusto
Desmancho ou evaporo

Apenas diante de mim mesmo
Adoeço e apavoro
Porque por mais que me saiba
Mais e mais me desconheço


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IMPRESCINDÍVEL

A poesia nem sempre acerta
Encontrar bons sentimentos
Entre razões transparentes
Por vezes a poesia é rude sagaz imprópria
E fere por não ser vil nem vilã
Nem conivente com quem a cria

No entanto aviva o espírito da busca
Nessa eterna procura
Faz-se irmã de quem a lê
Refugia-se no âmago da mente
A poesia é a incerteza da arte
E dela fatalmente se cura e apropria

Que dos sonhos nasçam poemas
Palavras que refaçam sentido aos ouvidos delirantes
Que dos lábios surjam palavras
Poemas imprescindíveis aos corações amantes
Que das faces reluzam escritas
Versos vivos complacentes dentre olhares amigos
Que dos risos brotem versos
Escritas feitas do eterno fruto de vívidos instantes

Que a poesia nos dê as certezas da alma
Em detrimento à utopia

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REFLEXO

Tenho na moldura algumas possibilidades chulas
Outras avulsas óbvias de não terem acontecido
E algumas vazias que jamais puderam ter sido

Creio ter nascido de algum descuido destes
Pois me enxergo na paisagem que atenta
Vem sendo repetida no vidro de um mesmo espelho
Que apesar de frágil não se torna velha
Mesmo sendo mínima ainda está intensa
Densa em face ao que se encontra lícita
Possível por assim ser cíclica ainda que arrebente
Perpetuará teu riso de menina

Sei que em face ao tempo tudo é passageiro
Que o incrível surge sempre do repente
Por isso amo o nulo e o reflexo das coisas tolas
Em se mantendo livre o pensamento aberto
Talvez seja o segredo de uma imagem boa

Pouco importa se tudo acaba e morre
Quero um gole do teu beijo cor de uva crua
Ao molhar meus lábios no teu vinho puro
Terei sempre em mim teu olhar perplexo
Da certeza de que tua beleza perpetua

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APÓS A PORTA OPACA

Ali após a porta opaca e o escuro
Jorra um rio e na sua beira arde a sarça
E ouve-se um estalar de fogo silente
E o cantar da agua que vai resiliente
Banhar quem sabe o que se passa

A quem não sabe desconfia
Que dali soa algum silencioso hino
Imprudente por seguir sem rumo
No pátio arcado sob a abóboda do tempo
O curso do vento ácido e líquido

Quem lado a lado se põe a traspassar o átrio
Pressupõe-se manso porem assaz sábio
Para despojar dos falsos alaridos
Reconhecer nas sombras a luz do outro lado
Lapidando as mesmas pedras no caminho

É um exercício árduo continuado
De agua e fogo limpando nodoa e lodo
Das vestimentas da alma ante o inusitado
Das avarezas do espírito por ser tão frágil
A ponto de entender-se purificado

Eu que esfoliei as mãos mas não calcei as luvas
Usei de aventais e ostentei as joias
Portei as ferramentas mas não suei a blusa
Deixei que a correnteza apagasse as chamas
Hei de arejar de novo o meu próprio templo!

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DESABRIGO

Eu desabrigo exposto ao frio
Os poros a carne os ossos
Fumo os afazeres secos escaldantes
Insuflo a umidade elegante dos ventos

Quisera dormir sem sono
Almoçar sem fome
Deixar de banho
Urinar contra a vontade
Fingir que descanso
Gozar sem alarde
Desregrar a rotina estafante
Desvencilhar dos costumes

De repente não quero nem mais ter nome
E sumir com as necessidades e sentimentos
Estirar às vísceras as apimentadas aventuras

Eu ando a esmo reeditando as loucuras

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FIM

O dedo pressiona o pulso
Apalpa aonde a veia pulsa
Conta por batida multiplicada
Cada pancada que ausculta

Se pusesse força ouviria apupos
Estilhaços entupindo artérias
Fosse delicada sentiria os sussurros
Do sangue entremeio alvéolos
Discutindo brônquios
Consumindo as células
Irremediavelmente bêbadas
Largadas ao relento na areia

Bem entende da linguagem que circunda
Ligando os tímpanos ao estetoscópio
Fraseando arranjos alveolares
Nos trastes de uma viola enrustida
Rendendo-se a melodia do tempo gasta
De tanto afinar as cordas da vida

O dedo ainda sente impulso
Apalpa aonde a veia pulsa
Atento à batida replica
Cada pancada que perscruta

A cura assemelha-se a um circo
Cuja pele que recobre o corpo
É lona lisa úmida ao sereno
Prendendo artista e arte ante a pena
Pelos olhos do espetáculo rústico
Entre a dor e um delírio mútuo

O medo abandona o pulso
Já não apalpa a veia não pulsa
Não há batida nem mais nada
A vida enfim fora expulsa

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AOS INTENSOS AMORES

Tenho mantido alguns intensos amores:
Às árias das flores e vinhos
Aos textos soberbos que sombreiam a alma e seus valores
Entre o sangue e os laços parentes
Por momentos da calma incontinente
Até mesmo pelas faltas da gente

Manter amores é arte que se espraia infinitamente
Pelos corredores donde o espírito encanta
Pelas singelezas em que a saudade se esconde
Disfarçada a espreita achando a felicidade de ser

Alguns amores nos pregam sustos e vão embora
Consomem até derreter os arredores das horas
E se fazem de tão íntima grandeza
Belos caminhos aos nossos perenes olhares
Atentos olhos que reluzem
A fartura que espuma e escancara nos seres

Sei que mereço manter esses avessos amores
Por isso vos amo às vezes

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MESMICE

Novamente a lua dá seu ar da graça
Laranja aveludada no horizonte
Por mim eu desinventava as demais fases
Deixava esta em que surge imensa
Transtornada em poema todos os dias

Apesar da resiliência gosto muito da mesmice
Sempre vi no meu quintal os mesmos passarinhos
Ciscando como bem conhecessem a rotina
De que o entorno do tempo envelhece
No contorno e às voltas dos caminhos

O que nos alenta ou atormenta
A vida inventa entre as certezas do dilema
Vou sozinho dançar a valsa da noite
Com o melhor dos companheiros
Como sábio bailarino da melhor das companhias

Com alguns leves traços
Eu consigo desenhar você e até posso descrever a lua
Mas não faço inverso
Pois afeto é algo como casca polpa e semente
Pura cumplicidade para que algo novo
Brote e de novo se reinvente sozinho

Amor e lua são propriedades de outrem
Também minha e sua
De hoje ontem ou de ninguém feito um verso

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TARDES BRANCAS

Sempre que as horas se descrevem pálidas
Octas do céu unem-se às suas nulidades sorrateiras
É como se os espíritos desprendessem da terra
E pairassem nas nuvens gélidas enciumando as estrelas

A tarde - essa efêmera polida de sandálias brancas
Pisa o profundo e deixa rastros nas veias
Profusamente passa de propósito e de encalço
Mas passeia tão leve como se nem adensasse
Peso algum sobre o cansaço do mundo
Apenas sobre nosso tempo e anseios

Suas sandálias brandas imitam tiras de couro
Presas por fivelas plásticas em fios de prata
Claras do ovo em neve da Antártida
Cores despidas das velas acesas
Tão ligeiras são as suas pernas
Tão névoas são as suas penas
Brancas e suaves também as suas meias

Hoje ainda domingo iludimo-nos
Nunca saberemos dos mistérios que a noite prescreve
Nem a quem de nós deixará vivo para as próximas feiras

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MIRAGEM

O que gosto nos teus olhos
É a convicção com que costumas
Olhar meu rosto quando olho-te

Vívida vertigem num relance de adereço
Leve qual folha de afeto que fita e voa
Enlace de fugidia bolha ao vento afoito
Nuvem que esvai sem rumo e endereço
Perder-se na paisagem cúmplice à toa

Ver-te é miragem
Achar que me fitas é fábula
Pensar que me enxergas - tolice

Ainda assim me perco sitiado em tua foto
Desenhado em tua imagem
Adormeço

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NÃO SOU PENSADOR

Não sou um pensador
Aliás as vãs coisas que penso não me acham em si
Riem-se de maneira absurda e voraz
Tão assaz e intensas são as suas asneiras
Volúveis ideias simplórios ideais

Certa vez pensei que pudesse deixar o amor
Sentado na soleira da porta vendo o tempo passar
Sem me esquecer de amar
Que pudesse guardar dos perigos das horas
Os clarinhos da lua sem que fossem embora
Que voltariam amanhã para os olhos ainda úmidos
Os sorrisos de cada lágrima que chora
Que as palavras que dissesse
Cerceassem dúvidas por verdade e mentiras

Ora envelheci na oficina dos versos montada no sótão
Do coração tentando produzir poemas como quem retira
Da toalha da mesa e dos amarrotados lençóis
As manchas prensadas da solidão que atordoa

Tudo que penso enfim esvai mas nunca aquieta
Deteriora quando a consciência me acorda
Apenas a teimosia perdura acometida da ilusão
De estar aprendendo a pensar poesia
Com olhares de poeta

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TANTO PRECISAM OS SERES

Tanto precisam os seres
Para sobreviver:
Da piedade dos ventos
Da bondade das chuvas
Da generosidade do tempo
Entre as raízes e as sementes
Na intimidade do ar

Da total complacência das sombras
Do que antecede e o após a fartura
Da postura do sol e indisciplina das luas
Do cio das nuvens
Da gentileza dos rios
Da fertilidade e misericórdia da fome das feras
Do acaso da fauna e da flora no sono da terra

Para o bem viver
Tão pouco careceria o homem
Senão da própria consciência de ser

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QUANDO PARTIR

Quando partir sairei de mim
De algum jeito separado ao trivial

As vestes ficarão vazias
O lado da cama estarei ausente ao lençol
Um prato não mais virá farto à mesa
Nenhum olhar me será perceptível
Inclusive a sombra desistirá sozinha
Da minha clara fiel companhia

Somarão por certo os pensamentos
À ausência completa de algo que persistirá
Resistir entre o acaso e a certeza
De alguma saudade até qualquer forma
De um verso amorfo de poema

Outra lembrança resiliente disforme
Dirá que nem tudo antes fora efêmero
Enquanto após seja dilema
Quão débil soçobre o poeta
Ainda deverá haver poesia

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REFORMAS

Na tesoura de madeira
Sob as telhas no alto da cumeeira
Moravam cupins dormiam morcegos namoravam pardais

Os anos acumularam poeira nos fios que cruzavam o forro
E sobre as lâmpadas que já nem acendiam mais
Mas ainda assim iluminaram gerações

Nas paredes e chão para espantar o sombrio
Foram postas novas cores varridas as dores
Pintadas em demãos escondendo o passado
Avivando as conquistas e alegrias que ali existiram

Toda aquela cobertura
Assistiu o tempo passar calado
Que entrara e saiu pelas portas e janelas
Dias e noites a fio

Era uma casa perfeita
Onde donos e tudo o mais que ali fez morada
Espiara o tempo fora de lugar

A casa agora aguarda vazia e renovada
Outras historias colossais como
As que vivera quando abrigava um lar

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ALMAS

Almas são folhas
Que se desprendem das alças
Caem das arvores por ventos silenciosos
Quando esvoaçam no sono dos anjos
Ao derredor dos sonhos e nos nascem

Portanto ainda que reclamem
Toda morte é a insensatez desfeita
Redesenhando-se em escolhas
Nem sempre aceitas

Algumas suplantam os mármores e decompõem
Outras vicejam raízes satisfeitas

A minha alma tem vidas e delas se vale
Quanto ao corpo
É mínimo detalhe


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O LÁBIO

Certo poema saiu sozinho
Espontâneo e manso pela boca da noite
Era tão farto intenso e doce que o lábio que o lia
Achava merecia um cigarro e café

Em meio a fumaça sentindo a poesia
Entremeio aos versos tragando a bebida
Sorvia estrofes como se no amargo sonhasse
Sílabas acesas que no âmago sorria
E antevia em cinzas ardores a lhe arder

Oh poema por que vais atrevido
Num final de dia atordoar os sentidos
Bem sabeis das loucuras das tardes
Que se escondem nos lábios entre a língua e o dizer
Bem sabeis dos verbos pronomes sujeitos
Dos objetos singulares denominando quereres
Bem sabeis dos significados entre o intuito e a malícia
Das delícias e carícias das palavras moças
De quem delas atrevido te apossas por prazer

Certo poema saiu rasteiro arranjado e apressadinho
Insano por estar incompleto e ameno ao ser diverso
Enquanto o poeta declamava seu vinho sem saber

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PECADOS

No amar nunca vi pecados
Pois não há o que se arrepender
Dos excessos inconstâncias e modos

Exceto o não ser sincero a si mesmo
Pois no amor se a consistência é fugaz
Todo o resto deixa de ser verdadeiro

Quem traz as mãos postas em reverência
Aprende que entre ambas manifesta-se
A sinergia que dá sentido ao que é bom

Então é esse calor que nasce primeiro
Que flutua e oscila entre um e outro coração
A fim de pôr essência ainda que a razão resista

Há amores que se põem sobre frágil balanço...
Que importa se vem e vão mas compreendem
Que a única mácula do amor seria não ter amado!

Pois no amor há que se eternamente empreender
O exercício de amar sem arrepender-se
- Não amar-se sim é sério pecado

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PAISAGEM

Teu voo é sopro de ave
Que se alça acima das nuvens
Sem sequer desprender-se da árvore
Onde fizera o ninho
E sabes bem voltar e pousar suave
Como repousam as horas feito borboletas
Beijando as rosas de mansinho

Assim flutuas aberta
Solta na matreira paisagem
Ao sabor do ligeiro vento
Que toca teu corpo com arte
Serena teus olhos na tarde
Desperta a orla dos lábios
Esvoaça os cabelos soltos
Realça na blusa os mamilos
E danças impetuosamente
No instante da imagem

E porque lindamente me insultas
E me pões a perder sem ar
Meu poema te retrata e me arrasta
A também atrever voar

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TUDO FALA

Efêmera
Nenhuma frase é tão efêmera
Ainda que a palavra do núcleo se perca

De fato
A gramática é um parto
Escrever é justamente o ato léxico
Do cumprimento extremo de um dom

Desconstruir
Não levar-se a serio emudece
No exercício de pesar pausa e silêncio

Esse pontual mistério até enlouquece
Tudo fala além da língua que externa
Exala cálculos

Nenhuma sílaba é pequena
Que não caiba num som

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TODA VEZ QUE O SOL NASCE

A cada vez que o sol nasce renasço

Não que a noite seja um calabouço
Mas toda manhã é um novo começo
E assim recomeço e refaço


Sou alvoroço de pássaro

Em busca do dia perfeito
Eu carrego nas costas
Um arcabouço louco e intenso
Imenso ato solitário de compositor
Imerso em acordes agarrados
A algum instrumento reverso
Que nem toco mas ouço


As tantas coisas que esqueço

São cenários desfeitos
E que reencontro em teus traços perfeitos
E se debruço deito e pouso
Os meus destroços em teus braços
É porque me aceitas e então renasço


O tempo não serve para definir meus espaços

Sustos e surtos não medem o que penso
Mas toda vez que o sol nasce te acho

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UM POEMA SOBRE NADA

Fico imaginando um poema sobre nada
Para que não perfure ou ame
Não faça loucura alguma
Não respingue nem cause
Tampouco estrague ou arda

Mas quais palavras ousariam descrever
O amorfo da sintaxe
A ponto de não ter sentido nem ser lido
Para que o risco não valesse?

O bom seria não chegasse até os teus olhos
Mas a culpa é da solidão que o nasce
E nem quis saber por que o faz fugir dos dedos

Ouvi dizer que muito além do final
Existe no vácuo da pagina o coerente
Engolidor de versos feios cheios de falácias

Mas estou crente de que além da poesia
Somente o que há são sentimentos
Segredos e audácias

Talvez nem quisera eu que me lesse
Mas agora é tarde e danem-se os meus medos

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ELOGIO À TERNURA

A ternura é uma espécie rara
De silêncio de pomar ao meio dia
Onde somente há o zunir de moscas azuis
E abelhas ocupadas em lamber frutas maduras
Semeando polens entre as flores
Levando cera pelas folhas
Misturando cores e cheiros ocultos
Dos frutos presos nos visgos e galhos
Alimentando pássaros e formigas cortadeiras

A ternura faz com que o anjo
Se ocupe em descobrir
Porque a flor desprendeu-se da haste
Tombou sobre a mesa
E foi ao chão voar entre as cadeiras

A ternura é um vulto solto
Sob o céu arcado de estrelas
Ainda que sujo de nuvens e sol
À noite talvez se possa vê-las

Ela junta conformidades às hipóteses
E nos dá a certeza de que
Se não se pode colar certas extremidades
Tudo se refaz desde que se respeitem vontades

A ternura é justamente esse olhar sobre as esperas

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TEMPO DE PASSARINHO

Ainda que a pequenos passos
Os espaços se tornem lerdos lentos e longos
Difíceis e cadenciados e largados

Ainda que menos largos
Causem embaraços intransponíveis
Mesmo a um pássaro acostumado aos altos rumos
De velha ave desprendida do ninho

Mesmo as vontades se tornando menos
Mesmo tendo voado a qualquer risco
Ao menor trisco
Soe manso sob a impressão de arisco
O mundo continuará vasto

Quanta diferença fazem os anos voados

Mas ainda que voe somente o pensamento
Espero jamais em nenhum momento
Perder meu tempo de passarinho

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APRENDE

Aprende:
Se trazes à tona
Amiúdes detalhes
Suaves
Miúdas vontades
Em singular artimanha
Destas que burlam internamente
E doem ou alegram até as vísceras
E perambulam entre uma ideia qualquer
E qualquer outra forma premente
Onde apenas a serena figura das gentilezas
Dome a doma dos sentimentos

Bem sabes não contraponho -
Fogem-me as palavras ainda que amenas
- Fico sem argumentos

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EM PLENO ESTADO DE POESIA

Ela costuma vigiar
As flores da orquídea que lhe enviei
E rega cheia de ternura as pétalas macias

Às vezes tem os talos entre os dedos
Às vezes examina as sépalas
Às vezes toca em torno dos labelos
E põe os bulbos tão perto dos lábios
Que o vento entrelaça pela haste esguia
E desfia com singela simetria
Tanto que embaraça nos rostelos
Os fios de trigo dos seus cabelos

Depois espia encantada
Cada nuance de cor
E sente um cheiro de poema
Em pleno estado de poesia

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PROCISSÃO

Quando chegavam os santos dias
Ficava da janela olhando a procissão

Alguns levavam velas acesas nas mãos
Enquanto outros disputavam o andor

Cantavam
Mas o burburinho nem sempre era oração

Então não entendia bem os modos da minha gente

Nos outros dias comuns
Eu ficava observando as saúvas
Que imitavam os adultos com exímia precisão

Algumas carregavam folhas
Com tamanho ardor que pareciam adultos
Desfilando nos ombros os santos da cidade

Mas o chiado que faziam as formigas
E os rastros que deixavam pelo chão
Era a mais sagrada e sincera definição
De profusa religiosidade

Então bem ouvia Deus gargalhando de contente


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ONDE NASCI E MOREI

Onde nasci e morei
A areia funda na fenda tonteia
A poeira moída e teimosa impregna pó
E se chove a lama coada vermelha
Afunda no contorno e debaixo da unha
Que chega a dar dó

Aquela terra cheia de marra corre na veia
Quando agiganta o passado
Engasga o nó seco e esbarra na garganta
Não há sequer lágrima que se contenha

Onde morei e vivi é diferente até
Aquele mar doce no entorno da gente
Tem forma de lagoa de agua fria
Embebida e benta no amargo da jurubeba
Num quintal de casa num fruto de guavira
Onde nem marmanjo e nem menino se aguenta

À sombra sob a flor do dia
Entremeio ao sol e aos temporais daqui
Aquilo por lá chega a ser ameno
Espinha profunda a saudade doída
Tão íntima que me mantém de pé
Mas me põe abrupto e pequeno

Teria sucumbido incrédulo na distância
Não fosse a indelével poesia e a profunda fé

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TALVEZ FOSSE EU

Eu sempre via
Brilhantes olhos d´agua me seguindo

Cantarolavam debaixo das folhas
Dentre as pedras onde nasciam
E feito enxurrada depois
No curso dos riachos sumiam

Diacho de tempo ligeiro
Talvez fosse eu
Quem não os acompanhasse de fato
E deixasse que se quebrassem
Nas quedas da cachoeira
E se perdessem no mato
Para ver se os esquecesse
Ou sentir se me esqueciam

Aqueles olhos verdes ligeiros
Por onde agora andariam?

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PARECEM DANÇAR AQUELAS BORBOLETAS


Parecem dançar aquelas borboletas
Dançam ao som de alguma inaudível valsa
Flanam soltas sobre as folhagens sob o arvoredo da praça
Tão leves que se engraçam com as cores das rosas
Tão puras causando inveja até mesmo aos pássaros
E às folhas e frutos amarelados entre os que se deitaram
Derrubados pelos ventos parvos jogados nas sarjetas às traças
Mas que cumpriram sina e sorte de terem sido fartos

Olha como a natureza replica a exuberância das causas
Não houvesse motivos a vida talvez detivesse exíguo sentido
Não fosse o tempo perderíamos a significância da morte
Não fosse a morte não estaríamos semeando o privilégio da vida
Essa dádiva vívida que nos conforta a dor na esperança
De que prevaleça o amor sobre todas as crenças e graças

Afinal meu amor deixa que a poesia floresça intensa
E ressuscite-nos dos medos dos fossos das desavenças
Da linguagem frívola que turva quem não queira entender
Que o mesmo mel e sal que temperam a terra brotam da lágrima
Que graça não é apenas o querer em poder te ter nos braços
Graça é poder te imaginar além no poder de um abraço
Para que nenhuma dor perdure mais do que necessite
Ensinar-nos de que quem resiste vive porque supera o fracasso

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PARA O OUTRO LADO

São os laços que trouxemos
Que diversamente nos atraem
Ademais criamos os demais
Os quais nos fortalecem
Ou por vezes nos traem

Diferente de embaraços os laços
Prendem tanto quanto os nós
E se desmancham se não bem apertados
Dificilmente desapropriam
Ambos os lados até saltam
Mas nem sempre repentinamente
Soltam se descuidados

Se bem arrochados comprimem
E exprimem excelsa união das partes
Selam os valores ainda que inaptos
Pois que se opostos sobrepõem-se
Os lados quando se unem entrelaçam

Realmente os laços que trouxemos
Ou criamos ou refizemos se desmanchados
Mostram-nos que do cordão que viemos atados
Somente estes levaremos de volta
Para o outro lado

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INDULGENTE

Paira sobre a idade
Certa ilusão de que nova paixão é utopia

Conta em segredo quantas paixões ainda teria
Ainda que lhe venha o medo dos futuros dias
E já não tenha mais noção de felicidade ou melancolia

Porque a vida é essa eterna evasiva poesia
Nos dá a visão de que se é bucólico
Sofrer ou sorrir bastaria

Quem está no campo imagina a cidade viva
Quem está na cobertura de um prédio
Sonha em colocar os pés na terra fria

Há inconstância espalhada pelo cotidiano
Dualidades naquele dia em que não se quer pensar
Aquele dia em que não se quer sofrer
Mas não há um dia em que não pretenda amar
Mesmo que ser amado não seja tão pleno

Ainda que intempestivo
Creio na indulgência do amor permissivo
Daqueles sem tempestade
Que faça momentos parecer eternidade

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PATRIOTAS

Quando menino inventava pátrias
E as distribuía contente
Para que no final das entregas
Houvesse alguma cumplicidade
Entre toda aquela gente

Além de vizinhos e colegas
Vinham também desconhecidos
Párias e filhos de outras plagas

Tornávamos fiéis amigos
E sem necessidade de qualquer patente
Cada um tomava um país e suas rotas

E até hoje ainda que sozinho
Viajo rodando o meu mundo
Reencontrando patriotas

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DESAFINANDO

Ando empenhado em reler
O manual de convivência entre os bons
Mas não consigo encontrar
O tom da canção que nalgum momento
Desafinando me fugiu das mãos

Pode estar no embrulho final do pacote
Amarrado a barbantes à garganta
Talvez no imbróglio da voz entrecortada
Sufocada pelo nó da bravata
Ensurdecida de lorotas

Seja no sentido das viagens
Que descuidei fiz inversas
E fiquei com medo de machucar
Ou a tentação repentina de amanhã
Adormecer ao invés de acordar

Pode ser a venda que pus dos olhos
Acreditando que quando abertos melhor leria
A partitura como o todo da sinfônica
Sendo que ela é tocada por partes
Mesmo quando nada se pronuncia

Ando desafinado dos instrumentos
No coral de nuvens esfumaçadas
Somente a calma sincronizará as voltas
Assim reaprendendo a modéstia
De repente consiga reencontrar as notas

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UM LIVRO PRONTO

Chegaste pela porta aleatória
E apesar da face recoberta
Exalava na janela dos olhos
Imensa poesia aberta

Na voz repleta de dúvidas
Dizia alguma história incerta
Sobre asas que voavam
A lugares que nem sabia
Que em si cabiam e não se davam

Foi de acaso que vi e ouvi
Ao acaso que recolhi teus vértices
E por eles apreendi meus versos
Inversamente do que previ
Mas que me fizeste vir de encontro

Foi de manhã enfim
Vieste pedir uma palavra qualquer
Mal sabia que trazias um livro pronto

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MÍOPE

Refletida no espelho
Busco coragem de encarar a imagem

Porém refletindo amiúde
Se pareço tão velho na idade
A quietude na verdade
Me põe bem mais jovem que mereço

Então olho de novo e de novo
Me enxergo ainda mais moço

Bobagem tanto alvoroço
A simetria é apenas passagem
De um reflexo impiedoso

Seria miopia ou esse ego teimoso?

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A QUALQUER HORA

Que importa quando irá
Não foi ontem nem outrora
Hoje não se está disposto

Não fui eu ou poderá ser outro
Quem ardentemente peça
Pode nem ir tão cedo
A qualquer hora
Ou nem sonhe e nem queira

Espera-se não seja amanhã
Mas não se iluda
Não será nunca

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SONETO DE SAUDADE

Passei tantos anos peneirando areia
Retirando a sujeira jogada na praia
Rastelando retalhos de algas sargaços
Pedaços de plástico e madeira

Às vezes não se podia esvaziar a lixeira
Havia tralhas que não queriam ser desfeitas
Restos de tudo abandonado sem dó
Mas que serviam de alguma maneira

Como se estivesse abanando sentimentos
Limpo agora as saudades do coração
Rastreio palavras renasço esperanças

De no árduo deserto da árida inspiração
Voando no passado mil pensamentos
Ver fluir em versos tão doces lembranças

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NÓS

A fome reunia pessoas em torno da mesa
E ia confortando um a um com saciedade

Quando não havia mais nada a ser comido
Dava-se um breve período de intenso fastio
Levantavam-se e cada um a seu modo partia

Ficávamos nós por algum tempo descartando restos
Lavando copos panelas talheres pratos e cozinhando

Depois voltava a fome com cara de outra gente
E igualmente dava-se o mesmo abastamento
Levantavam-se e cada um a seu modo partia

Foram assim anos e anos a fio entre salão e cozinha
Lavando copos panelas talheres pratos e cozinhando

Até que um dia a nosso modo também partimos


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LEIA

Tu que não te cansas de ler o mar
Não canso eu em mergulhar
Meu poema no codinome do teu olhar

Leia linha a linha de cada onda
Leia entre o balanço que elas têm
Leia sobre as pedras e as espumas
Leia as entrelinhas que se reescrevem
Leia as letras da tábua rasa e cheia
Leia para que ao lê-las se revezem
Na superfície nas profundezas
Leia no tênue brilho das estrelas

Tu que não te cansas de ler navios
Não canso eu em navegar
No raso rio do teu sonhar

Leia enquanto chamo as embarcações
Leia por rumos que se revezam
Leia mesmo que os olhos jamais alcancem
Leia para que se sintam cais
Leia quando o verbo não ventar mais
Leia enquanto há rumores de ventanias
Nas profundezas e superfícies
Leia sob a tênue luz de algum luar

Mas se te cansas ao ler meus versos
Verte tuas águas densas por outras fontes
Deixa que te leia eu nos horizontes

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LEOA

Pudera afagar quieto os teus cabelos
Encerar no couro a raiz dos pelos
Mantra denso de fino aroma pelos dedos
Mexendo levemente a mente e o cerebelo

Enxergar nos sonhos vivos devaneios
Como se tatuasse orquídeas pelo dorso afora
Passeando cínico pelo hemisfério do pescoço
Pudesse desvendar misteriosos sóis de aurora

Esquiar na vertigem tênue o arrepio da nuca
Ainda que nunca tenha estado em tuas costas
Encontrar entre a vasta juba o mel das respostas

Ah que me mostras o que tenha posto
A perder-me na figura esguia entre as coxas
Enquanto finjo na esfinge rubra ver teu rosto

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ALMA POETIZADA

Conecta tua alma ao silêncio
Se ouvir o íntimo será refúgio
Se enxergar o ilógico seja delírio
Se adivinhar o mágico cabem segredos
Se tiver gosto virá do incógnito
Se cheirar ávida haverá promessa

Conecta tua alma à cantiga
Se existir solfejo criará folias
Se encontrar abrigo será santuário
Caso haja lógica rirá da alegria
Se houver vazio sentirá repleta
Se buscar razões achará respostas

Mas se a saudade não deixa calar
E se os sentidos se perdem no ar
Ou se a inconstância escorre na lágrima
Não deixa que a tristeza seja imã
Sê passarinho e apenas confia
Conecta tua alma à poesia

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A POESIA QUE EM MIM FAZ FARRA

A poesia tosquia-me as garras
Apara o que transborda
Mesmo antes das bordas
Retira restos e arestas
Que evidentes restam
Das marras e amarras

Onde acho que ausenta jorra
Quando penso que farta carece
Se suficiente falta
Caso retenha extrapola
No desprezo consola
Perto do desespero ignora

A poesia já não tem jeito
Eu elogio ela farfalha
Tudo o que ajeito escangalha
Feito vento que espalha
As tormentas dos sentimentos
Pelos quatro cantos do peito

Perdoa se assim atrevo-me
No descaso que se desgarra
Do terço do tempo que resta
Retratar-te na teimosia do verso
Sob a insensatez do poema
A poesia que em mim faz farra

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A LUZ SEM COR

A chama da luz sem cor
Brilha intensa mas ninguém
A olho nu pode vê-la
Ainda que tenha o poder
De um incandescente farol
Ou a sinuosidade do pavio
Aceso na cera de uma vela

A luz sem cor nos norteia
Para horizontes azuis
Para noites com auroras
Para as tardes de ocasos
Desafiando as esperas
De que novos sóis acendam
As sobras das estrelas

A sombra da luz sem cor
Apesar da rara beleza
Assombra por não ser vista
Apavora quem não tem fé
Intimida por ser infinita
E somente quem nela crê
Percebe o quanto é bonita

Essa luz é a perfeição da alma
Que mora plena no mistério
Muito além da natureza
Muito aquém dos nossos olhos
Que se nos faz reconhecer frágeis
De tão insigne e mágica
Toma-nos por imortais

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AMENOS

Certas palavras conseguem corroer
Por malditas ou não ditas a contento
Feito beira de unha que arranha e fere
Enquanto a polpa do dedo com suavidade
Reconecta a tempo a carícia da pele

Mas a unha se usada com destreza
Roça o dorso em face à coceira
Carinha o poro da farta canseira
Quando da ferida elimina a sujeira
Cicatrizando a aspereza da vida

O toque do dedo às vezes arde
O risco da unha talvez amenize
Ações detém o poder de inferir
Ou num só concurso fazer sarar
Nessa incrível dualidade dividida

Enfim dependemos do acaso e da escolha
De cada silaba em cada verbo e momento
Daquele dedo em riste com veneno
Da unha polida com exímia sedução
Do grito ou sussurro a seu modo e jeito

Viver exige significados próprios
Coexistir ensina-nos a ser amenos
Perdoem-nos os fascínios exacerbados
Relevem-se a falta de domínio das paixões
Sejamos humanos - amemo-nos

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MOTE

O bom poema
Vive dos segredos que contém
E só o sabe quem os tem

Transporta em sigilo
O que as palavras não contam
Aos olhos nus o que dizem

O poeta tergiversa
Tornando-se mestre em esconder
Cada verso que arquiteta

Faz sentido se ao ler
Desaperceber que a luz
Dá-se na opacidade inversa

Enquanto a ilusão deflete
Poema e poeta se despem
Do que a paixão pensa

Porém é do amor irrestrito
Irrealidade inverossímil
Que ambos subsistem

Deixarei de ser poeta o dia
Em que não borbulharem poemas
Em minha fantasia

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NA DOÇURA DAS UVAS

E por estarem juntas umas às outras
Roçam-se deliciosamente intensas
E por estarem pensas pelo cacho
Traduzem-se pelo facho da serpente

Versejam justas dentre as folhas
Roxas e quietas aguardam pacientes
Encantando soltas entre os talos
Que a boca as exploda entre os dentes

Se casca gotejam ao corpo sereno frescor
Se pele exalam na língua intenso perfume
Cabem-se da densa polpa ao macio sabor

Na sedução ambígua do veludo das luvas
Degustamos no vinho o suor das mãos
E perdemo-nos ébrios na doçura das uvas

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FALO

Falo da fenda de bordas molhadas
Ligeiramente longa lisa e estreita
Onde o sol lentamente a tarde se deita
Falo da fenda recoberta por nuvens rosadas
Para onde convergem todos os voos
As trilhas avenidas olhares e estradas
Falo da fenda da pedra úmida
Que aberta espera o plantio da semente
E que pela fértil semente suplica
Falo da fenda da terra sonhada
Entre macias alças entreabertas
Despojadamente excitadas
Falo da fenda que fisga a fresta
Onde a inspiração vertente adentra
Na ranhura insigne do poeta
Falo da fenda por onde brota
A luz que emerge vida e brilha
Uma eternidade enquanto dura
Falo da fenda que o tempo perfura
Da fenda que perfuma a flor
Sobreposta no batente da janela
Falo da fenda de onde surge o vento
Abilolado informando que do outro lado
Nalguma greta do mundo alguém sonha


Assim pensado nada mais falo

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SONO

Estiquei as horas do sono
Fiquei maior tempo ausente
Despertei como alguém acorda do coma
Sem saber em qual momento está

Notei que num canto da varanda
Surgira uma casa de abelhas
Que três novas rosas haviam desabrochado
Que na parede do banheiro fez-se uma trinca
Que sobre o móvel da sala havia poeira

Não fosse a travessa de madeira do alpendre
Apoiada sobre a pilastra
Cuja lateral abriga o jardim
E a estante estarem habituadas
À casa num mesmo lugar onde durmo
Nem teria notado

Dormir é o prenúncio da morte
Eu continuarei dormindo
Até que não mais acorde e nem note

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SIMBIOSE

Há instantes em que num relance
A areia da praia sente-se farta
Dos tantos pés descalços calcando-lhe o chão

Há momentos entretanto
Em que a areia da praia sente profunda solidão
E molha-se de saudade dos mesmos pés descalços
Cujas ondas apagaram as pegadas dos passos
Cravados nos grãos

Nessa intermitente simbiose
Ao pisarmos, a areia acaricia suave os nossos pés
Depois se refaz plena
Nos carinhos profundos das marés

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EPITÁFIO

As três últimas palavras de qualquer poema
Deixo-as a quem pressentir que houvera arte no que compus
Outras três rimas a quem leu do que fiz
Três estrofes aos que souberem que escrevi
E três poemas àqueles que desejarem de algum modo
Entender que existi

Aos amigos
Suplico que semeiem
Todos os versos escritos nas entrelinhas das minhas mãos

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NO MEIO DA TARDE

Encaixo a minha mão
Debaixo do teu vestido
Mas se me dizes estar despida
Imagina-la vestida
Já não faz nenhum sentido
Rogar excentricidades

O sonhar tem dessas baldas
Cada qual com seu capricho
E mania e desvario

O sentir de qualquer sonho
Devemos às singularidades

Perdoa se a nua palavra arde
E o verbo rumina o dicionário
No meio da tarde

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IAZUL

As noites escuras de azul clareiam mais
São menos falhas de incertezas e mais reais
Noites azuis trazem lâmpadas de fuscos pungentes
Mas não apagam o indizível apesar da cor maldar

Nas escuras noites de azul a dor até dorme
As estrelas cintilam complacentes no derredor
Noites assim azulam as vozes incandescentes
E a solidão aplaca o peito que já nem quer chorar

Aprendi a transcrever os apelos destas vívidas noites
Quando o breu abre a escotilha do navio do céu
E dali brota o farol do esplendor da lua cintilante

Sobre a face âmbar e inquieta de quem a pressente
As noites assim são vivas cordilheiras brandas
Onde jorra abundante a poesia que o poeta sente

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HÁ QUE SER ASSIM ESSE BEIJO

Há que ser delicado
Fugaz qual pluma ao vento
Circundando em volta
Vagando num sutil espaço
Infindo do firmamento

Há que ser anárquico e preciso
De extrema lerdeza e lentidão
Absurda leveza da lâmina do lábio
Lambendo cada poro da pele
Transmudando o juízo

Há que ser vívido e mágico
Majestoso e de tal forma singular
Que as palavras servidas na boca
Após esse instável anseio
Não sejam silenciadas jamais

Há que ser assim esse beijo
Na sustenida volúpia da língua
Do jeito que o mar abraça um rio
E abrasa o doce sal das margens
Sorvendo o sabor das salivas

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DESEJOS

Quem te permite voar não são as tuas asas
Quem te impulsiona seguir não é tua vontade
Quem te faz retornar não são as incertezas
Quem leva a permanecer não são convicções

Porque asas são causas e não méritos
E vontades tens tanto de ir quanto de ficar
Incertezas existem aos montes
E convicções às vezes não resistem

Quem te admite a vida são os teus desejos
Estes sim são os verdadeiros donos das decisões
Os desejos são paralelos que pavimentam a alma
Porém tão intrínsecos que os mudamos de lugar

Mas se eu tivesse asas voaria até tua loucura
Ali seria o lugar perfeito para aprender amar


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SÚPLICA

Devagar o Buranhém estica a língua
Na intenção de provar do sal do mar

Primeiro lambe a Ponta do Apaga-Fogo
Depois sorve o sabor de Itacimirim
Ainda molha os lábios em Mundaí
E tem sede de Taperapuan

Já não coubera em seu leito
Hoje rasteja as sujas águas
Num cortejo suplicando piedade

Chora não meu rio
Outros podres choverão

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NOSSOS PÉS

Nossos pés mostram as curvas das estradas
E traçam as linhas rotas dos caminhos
Quando descalços imprimem rastros
Quando calçados demarcam caminhadas
Com saltos entrelaçam-se aos compassados passos
Quando saltitam balançam-nos sedutores os braços
Apressados sombreiam leves o corpo pelo espaço
Mesmo cansados sustentam-nos apenas
Quando calmos elevam além do solo
Quando alegres desfilam e dançam nos palcos
Quando choramos flanam emocionados
Se em êxtase comprimem as pernas
Quando relaxam entreabrem-nos os lábios
E ainda que em desavenças seguem-se calmos
Quando doloridos imploram descanso
Quando exigidos afloram os calos
Perseguidos tatuam sobressaltos
Saltitantes aprofundam as pegadas
Quando nos trazem é porque já nos levaram
E no ir e vir abundante as solas calejaram
Quando empoeirados relatam andanças
Se vestidos suam se nus resfriam pele e ossos
Quando inchados denunciam cansaços
E se parados ou novamente prontos a partir
Nossos pés seguem as linhas das estradas
Pouco importando se juntos repousam separados

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TUA BELEZA

Do lado de fora às vezes penso
Ser mais fácil ver lá de dentro
Entro e vejo como piora

Vendo a visão do centro
A vista da borda deteriora
O que pensei ter visto de fora

Consigo enxergar um ponto
Argumento de um novo jeito
Depois vejo de outra forma

Deve ser o pensamento
Que muda a cada conceito
E a opinião deforma

Tem horas que piamente creio
Que a realidade verdadeira
Mora dentro de um espelho

E de tanto espelhar-me
Torno rala e feia a imagem
Que julgava ser tão bela

E de tanto espelhar-se
Torna bela a feia imagem
Que julgara ser tão rala

E de tanto espelhar-te
Tornas rara e bela a imagem
Que julguei ser rala e feia

Porque tua beleza expande
O que meus olhos sentem
Ainda que não te veem

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QUILHA

Meu eu marinheiro
Circunda o velho barco
Emborca a canoa sobre o estrado
Examina a quilha da popa à proa
Remenda as velas
Veda as tábuas
Apara os estragos dos ventos
Das ondas brabas

Como se o tempo tivesse conserto

O que mata o velho barco
Não são as águas
E sim a solidão e as mágoas

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NUS NA REDE

Entre um gancho e outro que seguram essa rede
Presos às pilastras que sustentam a parede
Da casa em que vives as tuas doces horas
E moras e convives com teus sonhos acesos
Penduramos também nossos desejos

Até que a tênue noite dê lugar à aurora
Deixa que deleite então contigo agora

Balancemos nesse pêndulo enquanto aquietem
Os sons murmurados da noite ardente
Os movimentos ritmados de vai-e-vem
E a gente durma plenamente satisfeitos
Sentindo o roçar da brisa em nossos pelos

Deixa que me deite então contigo agora
Até que nus acordemos no advir da aurora

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DEBULHA

Tira com cuidado o bago da palha
Rasga com a unha a folha dourada da espiga
Um a um surgirão grãos macios do trigo
Em processo da espera da maturação

Esfarela
Esmiúça
Mói
Esmói
Rumina
Tritura
Esfarinha
Mistura com o fermento da emoção

Faz isso com sentimento
Sem intriga no coração

Convida o amor para a debulha
Depois partilha o pão da vida

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DEGREDO

Quando ouvíamos comedidos
Os avós contarem macabros degredos
Andávamos por escuros imaginando a dor

Estou agora na antessala da mesma casa imaginária
Revisitando imagens e apelando aos meus credos
Vencendo insanas guerras que submetem ao horror

Estão comigo somente fantasmas ao redor
Que me fazem comover tanto nestes tempos
Diferentes de quando irrequieto a astúcia sobrepunha

Deveria sabê-lo pois a idade calejou sentimentos
Os anos andaram minhas pernas por mundos intensos
Por onde partilhei confiança e recolhi meus medos

Apesar das lutas acostumei às batalhas rivais
A observar o quão são frágeis os argumentos
Que põem à margem nossos dilemas

Não trago as moribundas sentenças do passado
Somente prezo para que haja mais esperança
E prevaleça entre o meu e o seu mundo a paz

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A FLOR

Se estiver ante aos teus olhos
Próxima ao teu coração
Quando puder me regue com olhares
Molha-me com sorrisos de relances
Canções de apego que realcem
Sussurros de pensamentos bons

Te darei lembranças de momentos
Conforto nas saudades
Desejos entre respingos de silêncio e sons

E se estiver próxima às mãos
Ao tocar-me a maciez das pétalas
Será como pôr os lábios na flor
Da minha cor champanhe
Do meu caule marrom
Das minhas folhas verdes
Do vaso de veludo carmim
Que te despiu na hora incerta
Quando cheguei aos teus braços
No abraço do primeiro encontro
Vendo-te em meu novo jardim

Mas dessa visão efêmera acordarás desatenta
E te porás sozinha a gargalhar de mim

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A LUZ QUE ADVÉM DA TUA FACE

Descansar à sombra das tuas sobrancelhas
Sob a calma vaga dos teus belos cílios
Entre íris e pupilas imerso e absorto
À beira da imensidão nítida dos teus olhos
Contemplando teus traços ainda que numa foto
É um privilégio poético para poucos

Igual fazem anjos e arcanjos em suas dimensões
Ao tocarem nosso rosto com suave sopro
Ainda que num pensamento mais remoto
Apaixonam-nos tanto e de tal maneira nos encantam
Que divinos tornam-se também insanos
Esmorecem feito bichos aloprados feito loucos

E o que nos prende à imaculada beleza da face
Senão o retrato nítido da alma em transe
Clarividentes olhares entre pálpebras acesas
Dimensionando ao longe ainda que em sono
Durmam nalgum mundo dos sonhos da gente
Por humanos apaixonados tão ávidos deuses

Toda vívida imagem contemplada se completa
Repleta da vertigem de quem ardente observa
Torno-me viandante astronauta da infinita mente
Enclausurado em meu nicho ardo resiliente
Recolher tua imagem e nela divisar tua fronte
É alimentar meu impreciso coração de poeta

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SOBERANOS

Andam por esse corredor resilientes
Trazem os ouvidos surdos a quaisquer sons
Olhos rebaixados tentando ver as passadas

Não conseguem enxergar nada
Além do rosco umbigo
Na altura de um ventre protuberante
Debaixo do queixo diante do chão

Para qual imã segue essa gente?

Para onde vão maus e bons
Para onde correm tantos incessantes

Para algum fosso delirante denominado amanhã

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LEVANTE

Se tua arma mata
Talvez tua alma esteja morta
E nada mais importa


Nem a vida abala
Nem mesmo a bala da arma que atinge
Qualquer figura intacta

Beirando a morte

Mate - eis o mote
Avante! brada o bravo comandante

Depois alguém despetalará flores

Rosas pelas mesmas ignóbeis mãos
Em algum túmulo simbólico ornarão tuas dores

A ao menos um ignorado do front

Bandido ou soldado morto nalgum levante
Hão de lembrar-te

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CAEM BOMBAS

As bombas caem
Por que caem?

A gravidade as derruba
Detonam
Retornam para esta mesma terra
Explodem
E estilhaçam os jardins de Deus
Em nome do inferno dos homens

Caem porque foram içadas
Jogadas
Soerguidas
Aquém da vontade de quem as fizera
Além da maldade de quem as jogara

Mas por que são lançadas?
Ignora-se
Poucos sabem
Ninguem as espera

Caem
Caem
Caem

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POEMA RESSENTIDO

Após sete dias de árdua guerra
Ou invasão de um País encravado nalgum lugar do globo
Faz silêncio total de quem por si só
Evocaria e apregoa liberdade igualdade fraternidade
E outras tríades diversas - ainda que não fosse nesta mesma ordem

Nada!

Ninguém se pronuncia
Não questiona
Ninguém faz uma nota de repúdio ao terror ao horror aos sofrimentos da terra
Não se comovem não se posicionam...
Continua tudo irrelevante como qualquer outro fim de carnaval
Quando a ressaca sobrepõe-se a toda e qualquer ideia
Ainda que mais tosca depois da folia

Mas afinal ainda não é nem meia noite nem meio dia

Ainda!

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APELO

Cerro os olhos
Aspiro todo o frescor da brisa
Então displicente respiro
Sinto teu hálito vívido pela sala
Teu cheiro a perfumar a noite
Ânsia minha que precisa imaginar-te

Manda teus olhos nalgum sopro
Teus lábios por uma nuvem
Tua voz em única frase
Que acolherei teu riso leve
Junto a qualquer bobagem que perpasse
Por um pensamento breve

Vê que teu poeta apela
Porque tudo de ti me inspira
E apesar desse atrevimento desconexo
Te revido mil poemas
De alguma forma dizendo
Da tua cumplicidade clara
Que ouvistes meu apelo

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O TEMPO QUE DURAR

Frágeis corpos envoltos por membranas
Películas
Pelancas
Em tudo há pele e casca
A capa da casa são paredes
Um muro o couro cabeludo delimitando o quintal
Somos sementes da fruta além da carne intacta
Em volta há pelos
Fina relva de erva doce e suor de sal
Leves formas de areia

Vez em quando é preciso arrancar tijolos
Fazer buracos apesar das portas e janelas
Furar a veia
Buscar
Mesmo que dure o quanto sangre
E se saiba olhar no olho e ouvir
O que o amanhã tem a dizer
Até que o tempo pare de escorrer
Ainda que doa o tempo que durar

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ARROUBOS

A saudade é feita de arroubos
Rouba o silêncio do espírito
Enquanto extasia a alma
Arromba e silencia estranhos sentimentos

Estranha-se com os próprios tormentos
Atormenta as entranhas e aflora
Torna de si mesma companheira

Minha saudade brinca num pátio imenso
De esconder-se entre a hora falsa e a derradeira
E retorna-me num feliz menino arteiro
Lambuzando as mãos na hora do recreio

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O QUERER BEM

Aprende-se a gostar
A sentir saudades

Se os dedos pedem
Ainda que os olhos privem
Dá-se o merecido prazer
De enxergar o que está além
Da capacidade remota de ver

Dá-lhes possibilidades
De superar o que esteve aquém
Da própria vontade

Vale imaginar
De quão bom e suave
É o querer bem

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ANSIOSA

Fosse eu um vento arteiro
Remexia os teus cabelos
Esvoaçava teu vestido rosa

Fosse então ansiosa pétala
Perfumava-me em teu largo sorriso
Dessa flor que te põe cheirosa

Fosse simples gota da água
Inundávamos os jardins soltos
De felicidade imensa e calmaria

Fosse uma canção singela
Por tua voz suave e única viria
Embalar a tudo de amor constante

Fosse um beija-flor ligeiro
Sugaria destes úmidos instantes
Tudo o que faz ser singular

Que nos veem além dos olhos
Submersos rios distantes
Represando o ardor do mar

E porque a hora é sonho
Deito-me com meus poemas
Enamorando-te agora

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TECIDO

Relativa é a cor desde que contenha:
A maciez da paina e a leveza da pena
A transparência do pano com frescor de relva
O raro brilho da joia e a candura de pétala
A sensação da polpa na aveludada pele
A consistência da lã a tudo o que apela

Que envolva o mínimo e acaricie as margens
Ou se perca entre apelos de lisas paisagens
E absorva orvalhos e acolha olhares
E exale cheiros que se eternizem
Na ponta dos dedos por entre os vales

Que espante os medos e atraia a língua
Revele segredos sob a renda fina
Sem desvendar mistérios nos fios da seda
Trançados na esteira de tendões macios
Por volúveis nós refilando senhas
Por suaves trilhas envolvendo a ambas
Linha e costura misturando as duas
Escondendo-se mas tornando acesas
Divinas histórias que se tornam nuas
Ávidas e vívidas paixões e certezas

São assim tecidas as vestes e os planos
Embrulhando a vida ou tornando nus
Os encantos em cada um dos nossos sonhos

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CONTINUAMOS

Sinuosas nuvens pairam vagas
Sobre dunas desertas entre céus e mares
Intensas ondas remontam a esfera
Revolvem tudo o que navega
Entre fossos de rochas e areias
À mercê do vento que apela às folhas e reverbera
Nos seus devaneios nos derredores

Invejosos de vontades alheias
Águas sonham ser gelo
Neve pensa derreter-se
Ao não suportar o próprio apelo
Que o cálido sol leva-as ao desespero

Enquanto o ardor assoprar calores
O coração expulsa o ventre
Um tanto o sangue repulsa
Outra porção tripudia e pulsa entre

Mas o meu irreverente sopro valsa
Porque se o tempo acaba as vísceras
O pensamento renasce e perpetua esperas
Esse não passa

O amor refará a baila dos oceanos
E sinto que nas severas tempestades
Há o acalanto
Ainda que se vão os dias
Encerram-se em mim os anos

Se a isto assistindo até então não morro
Natureza e eu resistimos
Ainda que breves continuamos

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NAQUELE LIVRO

Aquele livro de capa amassada
Páginas soltas amareladas
Gravuras turvas puídas
Manchadas de gordura e lágrimas
Folhas rasgadas da brochura
Orelhas e dobras refiladas
Onde a tinta das letras muito negras
Duvidavam que podiam ser lidas
Trazia nas entrelinhas
Além dos nossos cheiros
Raros rabiscos a caneta e lápis

- Nomes aparentes dos netos e filhos
- Telefones de vizinhos e outros parentes
- Contatos de onde pedir taxi e gás
- Do novo médico dos rins
- A senha do cartão da poupança
- Aniversários e endereços ilegíveis

Residia sobre a estante
Entremeado por receitas
Comprovantes bilhetes e papéis
Sendo consultado várias vezes
Sempre que o telefone tocasse
Ou no instante em que a saudade doía

O tempo tirava-nos de casa
Mas as lembranças seguiam vívidas
Como adereços livres
Gravadas naquele livro

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AOS POUCOS

Se conhecesses a poesia na intimidade do poeta
Entenderias a pressa que existe em nascer seu verso
Poema não se faz vez em quando é copiosa promessa
Exercício de rotina da alma desigual dor repentina
Que explode no coração sem a qual não se completa
Bamboleia o corpo todo de um modo incongruente
Afeta a emoção sem noção brota do fruto da mente
Logo após aquietar-se no colo de quem o sente

Se soubesses do poeta na intimidade do seu sonho
Verias como ele morre de um amor tão perverso
Capaz de transforma-lo na vírgula mais íngreme
Que separa sua realidade das possibilidades previstas
Ao expor suas paixões sem mesmo que ninguém o sinta
E a um só tempo renascendo como a metamorfose dá-se
Intrínseca quando escreve reinventando-se no gozo
De sua própria poesia solta e só nalgum momento

Se olhasses o poema na intimidade do seu verso
Entenderias o poeta compondo seu próprio mundo
Sem ser tolo nem débil nem relés vagabundo
Perambula entre palavras com olhares de menino
Depois voa entre estrofes voraz por sentimentos
Até entregá-las prontas a uma alma ansiosa
Por guardá-las peregrinas formosas cheias de encanto
Adornadas da beleza de algum sentimento bonito

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EXPLICAÇÃO

A mais velha presunção de todas as eras
Desde que surgira o mundo e o verbo fizera
Insiste o artista em perpetuar sua arte
Ao contar em fatos tantos cantos diversos
Entre a lucidez e o sonho de uma conversa
Tornando em poema qualquer insana ideia
Surgira o poeta perseguindo a poesia


Se todo aquele que o lê lhe devora
Acomodando no espírito um único verso
Recontaria o tempo imortalizando o texto
Vivendo aos berros sem um único grito
Dar-se-ia a junção da palavra à voz concreta
Quando a canção entender-se mais verdadeira
Seguirá a poesia devorando o poeta


Tantos versos se reprimem pelo deserto
Incertos ao vento naufragando em mar alto
Outros sentimentos aforados tomam de assalto
Saborosos néctares de benfazejas chamas
Tão singelos diálogos que segredos componham:
Se insistem ao poeta em descrever tais encantos
Sussurram poemas que em silêncio te sonham

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FAKE NEWS

Achou Deus que concluíra seu mistério
Mentindo-me que certo dia descansara
À sombra da criação feliz pela criatura

Pura presunção divina essa vã postura
Tudo ainda é rústico princípio a se formar
Experimentando formas rudes de viver

Cada ser prova da vontade infinita
Buscando a perfeição desse projeto de vida
Que se refaz e aprimora perpetuamente

Deus minta aos doutos e sábios internautas
Mas poupe das indecorosas fake News
Este tolo e débil aprendiz de poeta!

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ESPERAS

Em derredor de toda casa
Circunda a tal felicidade
Seja entre espaços curados
Nas dimensões dos quintais
Seja nas asas dos pardais
Que voam livres pela cidade
Há nos moldes de vida
Entre propósitos e soluções
Orações que rogamos
E as intenções que se reza

Cada ser preza os princípios
Que o tempo ido ensinara
E permanece em busca e à espera
Dos diferentes conceitos
Que a escola da vida
Através das lições lhe provera

Façamos de cada novo dia
Nova oportunidade rara


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A FONTE

Olha como a fonte grata
Molha ao redor do olho por onde verte
Entre o musgo e o lodo verde
Sua alegria em brotar dentre as pedras

Tenra a agua que dali nasce e medra
Empoça e ensopa e escorre ligeira pela mata
E mata a sede do mato que a espera
Porque em riacho denso se converte

Nada pede ou apela
Exceto que a deixem cumprir sua meta
De ao espreguiçar-se do seio da terra
As gotas respinguem afrescos onde alcancem

Essa a arte da vida que somente entende
Quem generosa e densa nos gestos se enlaça
À vocação ainda que mínima quando abraça
As margens por onde seu curso segue

E tenazmente persiga a sorte
De ser feliz ainda que custe
O ardor maior da inconstância
Por aquietar-se para que outras gotas passem

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INCOMPATIBILIDADES

Dentro do rio talvez caiba uma canoa
Aquela que o oceano não aceita navegar
Porque pelo mar andam os navios
Que enfrentam as ondas robustas sem trincar
E dentro da canoa vão pessoas
E dentro do navio a multidão
Tantos iguais a mim que não sei nadar
Tantos iguais ao rio que não sabe do mar
Iguais ao navio que não cabe no rio
Iguais à canoa que não suporta o mar

Também em terra firme há um povo ambíguo
Embarcado nas barrancas do riomar
Em veleiros atracados sem destino
Presos aos cordões umbilicais
Dos poderes dos navios sem cais
Das carrancas presas às canoas inseguras

À deriva sem sequer sair do lugar
Dentro de cada um há incríveis mundos
Rios e oceanos esquecidos e a explorar
Para que ninguém saiba ir nem regressar
Sem a plena certeza de haver partido
Provavelmente qualquer homem caiba
Na orelha de um elefante
Isto não significa que ele lhe dê ouvidos
Por não saber escutar

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SEM NOÇÃO

Tuas pernas semiabertas em leque
Teu jeito moleque de me atiçar sem noção
Mostra ao disfarce dos meus olhos ver-te
Tua íntima face totalmente desnuda

Quero ao menos a muda porção descoberta
Esta ao alcance impossível da minha visão
Onde o sonho latente pede que veja
E com a boca molhada lamba e beije

Alguém diverso e distante deseja-te
Como a felicidade surpreende a risada
E o prazer momento a momento surpreende
Se a solidão infinita que apreende enseja

Estou também sozinho cercado no alpendre
Feito um longo novelo de macia lã
Aficionado por tua alma pudica e aberta
Desejoso de um fio macio do teu pelo

E se estiveres lisa como o assanho da lua
E se ao menos distante ouvir meu apelo
Arrepia a nuca como apalpasse meu semblante
E deixa o luar te amar por mim como nunca

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MEU POEMA BATEU À TUA PORTA

Meu poema bateu à tua porta às duas
Três estrofes espalharam-se pela sala
Algumas rimas invadiram o teu quarto
De verso em verso deitaram tua cama
E algumas palavrinhas desnudaram-te

Sabias que eu vinha em forma de poema
Sabias que o poema inteiro te queria
Ainda que estrofes ficassem pela sala
E que verso a verso deitariam tua cama
Algumas palavrinhas desnudariam-te

Então desnuda abraçada à poesia
Deu-se a madrugada infinitamente exímia
Entre chão e teto explodindo em arte
Esperando que a noite jamais acabasse
Ainda que finalmente acordasse o dia

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TEMOS PRESSA

Temos pressa mas nos esquecemos de que tudo vem
Nascendo aos poucos
Aprendemos aos poucos
A falar e a ouvir e observar
A amar e saborear o sentimento de ser amados
Aos poucos crescem as plantas
E os frutos para que não os apanhemos precoces

Podem até aparentar ligeiro porem entregam-nos aos poucos
Em doses ou pacotes porções lotes
Pedaços blocos frações que se apropriam de nós
Paulatinamente se repetem
Preenchendo os vazios enraizados no tempo

Queremos muito mas também este aos poucos
É-nos ou não concedido

Porque apenas a morte e somente ela
Definitivamente chega inteira
Ainda que nos leve aos poucos

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DESPIDOS

Quando esvoaça o vestido da tarde
E em seu tornozelo a barra resvala
Ou se o tecido macio seu seio ampara
Ou se ainda o pano suave no seu colo cola
- De onde advém a ânsia e a libido?

Quando o desejo arde e aflora
Explode de dentro do peito
Ou cinicamente vem de fora
Perturbar o juízo de quem enamora
- Induz ao desalinho ou ao vento atrevido?

Pouco importa se pela alça da blusa
Ou na cintura da saia - responde a brisa
Fugaz é o encontro entre a linha e a pele
Que acarinha e recobre e eriça o poro
E te põe infinitamente bela

Enquanto sonharem poetas e anjos
De braços dados com a rara grandeza
Da brandura dos dias ainda não lidos
Todos os modos do destino à sorte
Ainda que ocultos permanecerão despidos
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IMPROVÁVEL

O sol forte às vezes excludente
Mesmo sem nuvens nalgum momento
Por causa das sombras
Ignora-nos intransigente
Rodopia o dia inteiro
Por trás dos montes
E não enxerga a gente

Que dirá teus olhos de mim
Ainda que os meus te busquem
Muito mais mais muito faiscantes
A todo instante em pensamento!

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PASSAGEIROS

Eram extensas claras estradas
Sem retas ou curvas
Nem pontes nem guard-rails
Onde carros e trens ficavam parados
Aviões às margens estacionados
Navios nos piers

A esperar por ninguém nos passeios


Quem seguia eram as estações nada ligeiras
Estas sim entremeadas sucediam passageiras
Trazendo e levando cada um a nenhum lado


Até que a vida as tornou turvas
E as viagens apressadas fizeram de nós
Nesta curta jornada
Meros passageiros

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A SEDE DA RUA

NAQUELA NOITE UM MUNDARÉU DE ÁGUA
SENTINDO-SE REPRIMIDA
DESCEU DECIDIDA A NÃO MAIS SER ENGOLIDA
PELAS BOCAS DE LOBO
E INUNDOU E CEIFOU MUITAS VIDAS

Após três semanas de intensas chuvas, minha rua de areia preguiçosamente ainda filtra as ultimas poças, cuja lama vai sendo ressequida pelo forte sol e o fétido cheiro do barro recoberto de composto vazado dos dutos da Embasa se dissipam dissolvendo a nata. O mundo inteiro soube que choveu muito neste canto baiano, aliás, muito além do esperado e previsto, inundando ruas e ruas e avenidas, transbordando rios, desfazendo riachos, arrebentando córregos, invadindo espaços como pode. Agora, a natureza se refaz, ou nos refaz de sua tresloucada descarga pluvial.

Estranho que as ruas calçadas sempre tiveram um recalque comigo. A princípio, nunca residi em uma casa cuja rua fosse pavimentada. Quando solteiro, a Rua 2 de Julho (hoje Dr Munir Thomé) era puro areião vermelho misturado a bosta de cavalo. Casei. Fui morar no Santos Dumont, na rua vermelha recoberta por cascalhos e carrapicho. E foi a conta de mudar de casa, meteram asfalto de uma ponta à outra da Thomé. Dois anos passados, nos mudamos para a Lapa, e oh o mundão de terra se repetindo por aquelas bandas. Ah, foi virar a esquina e dar tchau para o Santos Dumont, o piche recobriu todo o seu vermelhão... Interessante que o único trecho da Lapa sem asfalto media exatos cem metros, justamente onde foi erguida a minha nova casa. Mais seis anos de areia e lama, e vice-versa. Resolvemos mudar de Cidade. Adeus MS, vamos pra Bahia. E foi trocar de Estado, também tingiram de negro aquele estranho pedaço que faltava.

Após três ou quatro ruas trocadas por aqui, esta permanece mantendo as origens. Areia esbranquiçada, misto de antiga praia e restinga, duzentos metros distante do mar, lençol freático à flor da terra, chupa toda a agua possível que desce até mesmo fora das previsões normais. Um caiaque azul já navegou por ali há anos atrás, então não é a primeira vez que o Chamagunga joga a aguada fora.

As aguas cansaram da rotina das mitigadas bocas de lobo, fugiram para os lados e acima, preencheram todos os fossos, apagaram rastros, invadiram quintais, deixaram lodo e lama. As areias da rua as consumiram, matando a sede do subsolo, vertidas por Deus. Sobrou a céu aberto uma camada nesga de terra úmida suficiente para colar solas de sapatos e pneus. Até que seque tudo, ou chova mais.

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SEIS PALAVRINHAS MÁGICAS

QUANDO NO ALTO DA PALMEIRA
O PICA-PAU RESOLVEU LHE FURAR A MADEIRA
INDIGNADO COM A BARULHEIRA
GRITOU O COQUEIRO: AH, NÃO!

Desde o mês passado, quando a cidade decretou período de alta temporada - e olha que estamos somente nos primeiros dias de um novo ano - tenho ouvido cantar mais de perto meia dúzia de palavras as quais não posso transcrevê-las aqui, pois se assim o fizesse por certo bloqueariam de imediato esta minha conta. São palavras que complementam as frases (ou versos, ou estrofes) do 'vai novinho' e 'vai novinha', repetidas dezenas de vezes seguidas a incríveis turbinados decibéis.
Bits de um mesmo ritmo, as pancadas fortes e os gritos por vezes argutos, por vezes mugidos, berrados, grunhidos, solavancam o tradicional silêncio pós-almoço de um dia de domingo que tanto almejamos e merecemos. Ou ecoam madrugada afora cortando o sono, interrompendo sonhos, maculando o breu da noite deste sessentão insone.

Mudam as mãos que seguram os microfones, trocam as bocas que os assopram desregradas, trocam os endereços, mas as seis ou sete palavrinhas proibidonas de serem transcritas aqui prevalecem altivas, soberanas. Mudam as 'bocas de som', mas os streamings são os mesmos recebidos ainda no 4G e transmitidos via bluetooth para nossos ouvidos feito penicos. Quanto mais alto o som, melhor. Sinal de potência, de poder, dominância ou predominância da situação, do espaço conquistado, do objetivo alcançado. Quanto mais explicita a palavra, mais realismo à descrição 'poética' do canto nada orfeônico que reverbera nestes novos tempos, transformadas em estranhas coreografias no mínimo toscas senão putíferas.

Neste meio dia, saio na varanda. No térreo à beira da piscina, quatro marmanjos sentados na borda com as canelas na agua, seguram copos com whisky e energético certamente quase sem gelo, rindo do nada, cantarolando as menos de dez palavrinhas zurradas provindas do som. Pouco à frente e mais perto das JBLs, três novinhas também rindo do nada e cuspindo as mesmas frases dos seus ídolos MCs, mantém os celulares conectados ao vivo nas redes sociais, mostrando às amigas, ou amigos, ou à mãe lá longe num lugar que talvez nem exista, a façanha daquele momento tão fútil e desprezível quanto as batidas daquele indecoroso arremedo de funk.

Meu pai, convivendo com os altos sons dada a surdez que severamente lhe comprometera o entendimento, caso ainda estivesse por aqui certamente no entremeio da barulheira trepidante perguntaria: 'quem deixou a rabanada cair no chão?'

Eu, que um dia já achei que 'na boquinha da garrafa' e 'eguinha pocotó' fossem o fim do mundo, tenho agora legítimas provas da reencarnação do ócio. Creio que não esteja eu mais tão novinho e, portanto, deveria ter os ouvidos mais íntimos das seis mágicas palavrinhas... Mas todos e cada um e a seu modo, desejamos felicidade em 2022, mesmo que não venha por meio de uma sinfonia de silêncios e sons esperados. Feliz Ano Novo!

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UMA FORMIGA IMENSA

Uma formiga imensa
Passeia descalça
Displicente fazendo troça
Na frágil planta do meu pé


Bem sei que ela pensa
Que morrerei da cócega
Caso seu veneno falso
Coce em meu dedinho


Levanto o calcanhar e lhe maceto
Com arroubos de poemas
Metossoma, mesossoma e cabeça
Sutilmente, com carinho


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MUTUAMENTE

Toda alma deveria morrer de paixão
Pelo frasco que a acolhe transigente
Onde o inseparável espírito coabita
Fartando-se de efemeridades e benesses
Entre deliciosos pecados e frutuosos sonhos
Sem preocupar-se da realidade evanescente,
Amarem-se mente e corpo mutuamente

Viver desta mania repentina maneira
Em revelar o bem olhando bem de frente
Nada assustaria, tudo surpreende
Nenhum ser seria um pote mal fechado
Nem vidro, nem lata, clone de produto rotulado
Seríamos todos incensos de essências
Fumaça que perfuma e refaz no ambiente

Por vez que se quebre o vidro e a tampa amasse
Mesmo que nos tranquemos para o mundo
E o mundo nas tortas voltas nos revolte
Somente quem preza o valor da amizade
Dá-se na condição divina de ser homem
Refaz na fusão humana a eternidade
Detém a capacidade de amar plenamente

Então, que não se rompa nenhum elo da corrente
Ainda que a intempérie se revele reticente
Saibamos ser fortes, donos do destino
Mestres e aprendizes, eternos meninos
Sentados à mesa deste farto banquete
Que nos serve a vida dispersa pelo tempo
Cada grau de graças sorvidos, vagarosamente

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EM OUTROS TEMPOS

Em outros tempos
Estaria vendo teu rosto por inteiro
O sorriso verdadeiro escapulindo dos lábios
Junto às falas e frases em sons amenos
As maçãs rosadas debaixo do olhar matreiro
Entre as mechas douradas dos teus cabelos

Em tempos passados
Tocaríamos as mãos seladas entre os dedos
Pelas palmas suadas expelindo desejos
Abraçaríamos sem medo assegurando afagos
Como quem baila ao ritmo apressado
De um silêncio desmensurado

Em novos tempos
Estaremos cada um a seu modo em diversos lados
Talvez até sussurrando ainda apaixonados
Imaginando-nos amantes
Amados ou então ausentes

De nós nada sabemos no amanhã escondido
Do tempo apenas conhecemos o que veio antes
Do hoje é o que temos para ser vivido

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SÃO SOBERANAS AS PAIXÕES

São soberanas as paixões
Aos olhos vívidos dos apaixonados
Ainda que ridículos pareçam ser
Seus louvores seus pecados
Risíveis gestos inexplicáveis
As enamoradas inquietudes
Tornam-se efêmeras verdades
Que só o pensamento dirá eternas
Pois o tempo é uma brevidade
Do tamanho de qualquer frase
Que expresse ou reprima um sentimento

Onde foram guardadas as loucuras
Cometidas em nome dos amores
Encontram-se também os sabores amados
É como se déssemos refúgio aos sonhos
Que extrapolaram as próprias voltas
E mais longe bem mais longe se acharam

Eu sou das paixões um fã inveterado
Vivo das tolices expressadas nos poemas
E os meus poemas ainda que desritmados
Buscam tua alma ou os teus olhos apenas

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EQUILÍBRIO

Sem luz tudo é parvo
Amorfo
Nada reflete
Nem há sombra

Mas também se há excessos
Mesmo que reluza
Assombra
Assusta

Pautar o equilíbrio
Sabe-se
O quanto custa

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CONVICÇÕES

De nada estou certo
Sempre abominei as certezas
O tempo é afeito a surpresas
Nós as tornamos distantes
Soltas nas correntezas se vão
Ou por sorte sentimos por perto
O que por viés longe estavam

Ontem choveu todo o dia
E enquanto o chuvão chovia
Não vi nenhum pássaro pela varanda
Cobiçando migalhas de pão
As formigas se ocultaram
Ninguém abriu as janelas
Também me ausentei da rua

Os insetos já circulam
Sabiás brincam nas poças e caçam-nos
Os vizinhos dobram as vidraças
Amarrando as cortinas nos raios da manhã
E eu de soslaio saio de acaso
Como saem os pensamentos
Sem saber se advirão 

Ainda que perdurem as dúvidas
O tempo derrama surpresas
E abrasa ou moi fortalezas
Cada coração constrói seu edifício
Mesmo sabendo o quão difícil é
Alicerçar certezas nas ilusões
Danem-se as convicções

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IOD

Tem cinco pontas esta estrela
Cada uma de si companheira
Cinco companheiros irmanados
Fraternos caminheiros
Obreiros de uma vida inteira

Cinco forças erguendo a obra
Traçando passos certeiros
Cinco mentes sentinelas
Aclarando a viva egrégora
Despojados semeeiros

São cinco castiçais acesos
Evidenciando da luz a beleza
Lados coesos de um teorema
Fortificados pelo espirito
E objetivo que os conduz

Cinco almas peregrinas
Andejos do árido ocidente
Empreendendo nas ferramentas
Árduas lições da lua acesa
Junto à orla do oriente

Tem três letras essa estrela
Em cuja chama as traz escritas:
Para que o homem seja puro
O mundo um tanto mais justo
E a humanidade perfeita

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ECLIPSE

Ela apanhou a lua
Ficou na ponta dos pés
Esticou as mãos e simplesmente apanhou-a
Tão natural como quem se estica inteira
E rouba frutas maduras
Laranjas pêssegos mangas
Cachos da videira


Ela roubou o sol
Da vasta constelação de estrelas
Com propósito único
De despertar a aurora


É muito cedo agora
E ambas incandescentes na perfeição da esfera
Incontidas, fluorescentes, avivadas
Brilharam a noite inteira
Seminuas em minha mente

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A TOSSE

A tosse do peito se apossa
Explode da boca
Mas não se sabe
De onde ela nasce
Se do oculto fosso
Da ânsia do corpo
Ou do irreverente sopro
Que sai fazendo cócegas pelo esôfago
Que expulsa a agonia da alma
Por excesso de sede
Ou elegia à fome
No pântano danoso
Que destroça o pulmão

Sei apenas que num impulso
Sozinho tusso e me desmancho sonso
Qual um gozo zonzo de solidão

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PERDIDAMENTE

Se te pareço sem noção
Que chego a ser esdrúxulo
Tanto esquisito quanto excêntrico
Extravagante por ser ridículo
Inverossímil coração,
Amo-te perdidamente então


Experimente amar num descuido
Apaixonar se o juízo perder-se
Como desejasse um chocolate
O envelope pelo remetente
A árvore enamorada à semente
Um chute guiando a gol
A voz harmônica empostada
Teus olhos iluminados de azul
Como se em paz morressem
Às cegas por todo o sempre


Ser do amor tão discípulo
Por vezes acalanta o vexame
De estar egoisticamente amante
E nada mais permitir-se
Exceto a generosa certeza
De entender que seja possível
Amar sem exceção ainda que ausente


Quem assim age desassossega
Interage com a irrealidade
Endoidece de emoção


Amo-te ridícula e excentricamente
Na solicitude do amor imprudente
- Vê quão voraz é a paixão!

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INACREDITÁVEL

Em alguns lugares onde havia florestas
As árvores agora mal convivem
Noutros solitárias sobrevivem ali e acolá

Dizem que existem lugares onde nem existem
Não resistem e secam e de solidão morrem

Fenecem tristes porque nenhum pássaro
Ousa fazer ninho em seus galhos

Sem formigas cigarras cupins
Sem a vantagem do verde das folhas
Não sombreiam nem arrefecem não suportam

Soube de um causo onde desocuparam os lugares
E foram morar na imagem de alguma tela
Pendurada na parede de papelão
Nalguma sala na invasão na favela
Ou apartamento de concreto longe do chão
Sem mudas nem flor nem fruto ou semente

Alguém contou isso ao porteiro
Quando pediu notícias da terra
Este de pronto disse-lhe
Meu Deus rapaz como você mente

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RECEIOS

Aprendi a ter receio
Das situações prementes
Não da voz da consciência
Nem dos ausentes momentos
Temo as ações cotidianas
Dessas que deliberam insanos
Que santificam demônios
Conjecturam ideias profanas
Idealizam absurdos
Ridicularizam as sarjetas
E posam de inocentes

Tenho medo do ser gente

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VIAJANTE

Na indiferença entre estrada e caminho
Os meus dias teimosos porem decididos
Levam-me viajante ainda que sozinho
Seguindo rastros e largando pegadas

De onde vindes? - pergunta-me o pretérito
Para onde vais? - questiona o destino
Temeis o futuro? - indagam o risco e a sorte
Para o sul ou para o norte? - frisa o rumo

- Pouco importa! - respondo convicto às verdades
Peregrino semeio amigos não vãs amizades
Meu eu poeta é rude e nem sempre afável

O poema é furtivo e talvez desagrade
A palavra despreza e incômoda incomoda
Mas se a poesia vive é isto o que vale

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BALANÇO

Se a menina solta dançando um sonho
Faz do balanço um trapézio e flutua
Voando descalça e livre no espaço
Na esquina da noite sobre o chão de areia
O mar inveja o vento que a empurra
E ela vai pelos ares e por ali passeia

Se a menina faz do trapézio um balanço
Entre as cordas num tapete de tábua
E se esguia na cara da noite balança
Sob os olhos das pedras na boca da praia
Dá-se o espetáculo ao sabor das ondas
E ela sai pelos ares e o mar desmaia

Se esse doce bailar toma de encanto a menina
Se a felicidade a extasia e dela se apodera
Quem dera também no horizonte surgisse
A lua faceira iluminando essa noite
Balançasse cercada de uma via láctea inteira
Sussurrando à menina uma doce cantiga

E se a menina passeia nesse vai e vem
E se sorrindo ao seu público ela o entretém
A natureza a enfeita e o tempo ensina
Que a arte ciúma do artista que não cumpre
A sina em crer o quanto à vida faz bem
Ser simples e quanto mais pura mais linda

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FIM DE TARDE

Vieste e antes que a visse intensa
Trouxeste a calma para minha ânsia
Qual flor que doa à brisa a essência
Da tarde que finda, e da alma se apossa
E torna sublime a presença

Chegaste infinitamente densa
Tornando a tempestade mansa
Mergulhada em onda imensa
Generosa, suave, infinita e serena
Desejando que o momento falasse

Diante da tela nua esperando palavras
Estivemos solícitos perante o silêncio
Buscando que um verso nos descrevesse
- Deste lado eu abrupto aprendiz de poeta
- Daí, tua íntima poesia viva, completa

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PARALELO

Rezam as mais ternas orações
De que a piedade é das ações
A mais doce virtude humana

Apiedai-vos pelo mundo controverso
Do poema quando este nada diz
Pelo tempo perdido que os fiz
Quando deveria ter estado atento
Às inúmeras outras formas de provento
Ao ócio tão necessário ao descanso
Aos passeios ao teu lado que me opus
Pelas noites fugidias do sono pelos sonhos
E às conversas e embates que não tivemos

A poesia tomou-me em paralelo
Instrumento arisco da palavra profana
Já não vivo sossegado sem o verso
Sem a estrofe e a ousadia da rima
Eclodida da cândida página inespecífica
Dentre as folhas abertas de um livro

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CERTEZAS

Quando menino eu via
O sol desmanchar-se lindo
E perguntava-me irrequieto
Para onde estaria indo
A imensa luz que explodindo
Caía ao findar do dia

Agora estou certo de que
A cada vez que se esvai e esconde
No encalço dos seus próprios giros
Sou eu quem está partindo
Sou eu quem está partindo
Sou eu quem está partindo

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INVIÁVEL

Nesta manhã ao fim do arrasto na enseada
Doze homens puxavam a rede por longas barbas
Nada tiraram das aguas doces exceto folhas emaranhadas
Os cento e cinquenta e três grandes peixes faltaram

De repente o décimo terceiro homem caminhava
Sobre as areias no leito do rio sujo e assoreado
Os amados irmãos entreolharam-se calados
Ninguém atrevia a dizer nada

Às vezes é inviável o milagre

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ATREVIMENTO

Somos meninos deslumbrados por paixões
Desfilamos atemporal o que passa e nos segue
Não perdemos jamais essas intensas manias
Das deliciosas folias provindas de emoções

Do amor que a cada um nos persegue
Há quem ache exagero, diria eu romantismo
Há quem diga insano, chamaria ousadia
Considere imaturo, preferiria continuar tolo

A deixar de sonhar enquanto os anos se esvaem
A deixar de exalar um olhar atrevido ou tardio
A suprimir do sorriso a intenção de um beijo...

Que seria do amor não fosse o atrevimento
Exaltado nos versos e canções dos enamorados
Não fossem eternos os apaixonados sentimentos!

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VOAR

O mar também é sertão
Imensidão deserta cujo andejo é pescador
Marujo navegante prático capitão

Meu barco a deriva procura por um cais
Aduaneiro cobro-me por versejar
Pelas velas do saveiro onde o leme é a solidão

Timoneiro vou levando pelos ventos
Nada colho senão historias e aventuras
Professadas bem depois

Confesso não sei nadar em tuas águas revoltas
Posso até desejar um mergulho teimoso
Mas ninguém precisa saber destes medos

Talvez fosse menos flácido e pecado voar

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ESSENCIAIS

Experimente entender as ausências
Às vezes são essenciais quando presentes

A pausa alongada na música
O tempo que se descansa
Segredos que não se contam
Verdades amarrotadas
Deus quando em silêncio
Testando a paciência
Como fosse nossa última dança

Aprendemos a alimentar os sonhos
Rabiscar futuro e destino 

Cozinhamos sem perceber
A resiliência da rês ante o abate
A solidão das estrelas no infinito
Ruas distantes cruzadas na infância
Lagos mergulhados cheios de dúvidas
Cada um carrega insuficiências no espírito
Tristonhas ou de ingênuas alegrias

A nostalgia mora além da perfeição
Bem acima do conceito daquilo que é bonito

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INSTRUMENTO

Um poema torna-se completo
Quando o crivo dos teus olhos o aprova
Quando massageia os lábios e o sentes como beijo
Perpassa pela língua qual um doce desejo
Enrubesce, toca a face num carinho que se prova
Comove ou simplesmente quieto alenta

A palavra madurece no entorno dos sonhos
Quando lida falada ouvida ou cantada
Oscila entre a angústia e o inesperado
Vem em forma de versos como os segundos
A seu tempo transforma e a arte muda o mundo
E em si mesma complementa e completa

Cada leitor para um poema é imprescindível abrigo
Ser poeta é mero instrumento

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ABRAÇOS ABERTOS

Quando se abre um abraço
Traz-se para perto e entre os braços
A contemplação do amor diverso

Tantos vieram de abraços abertos
E nesse aperto de enlaço
Te identificas e me reconheço
Como centros do universo

Por isso abrace abraço
E nos abraçamos certos desses gestos
Cercar-nos contra o perverso
O despudor de quem descrê
De que a alma necessita encontro
E encontra-se quando acena
Transposta de sentimentos
Acalma absurdamente serena

Abraço não é redoma
É dádiva que sublima graça
E transcende espaços

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A TERRA É AZUL

Não há céu nenhum sobre nós
O mundo é solto no firmamento
A terra é azul sob o sol
Todo o resto é encantamento
Negra ante o brilho da lua
A magia é encantamento
Árida ou molhada de chuva
Seu cheiro é encantamento
Recoberta de flor e floresta
Frutífera de encantamento
Fértil pelada ao vento
A poeira é encantamento
Sob tempestade adversa
Revolta de encantamento
Banhada por oceanos
Incólume de encantamento
Tomada por ordinários
Não deixa o encantamento

A terra é azul sob o sol
Plural universo entre nós
Encantamento paralelo

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EUS

É diferente o caminho
Por onde faz andança o amor 

Sei tanto quanto desconheço de carinho
Assim nem desejo nem penso ou imagino
Quão dissabor traria viver sem paixões

Gostar é partilha que faz diferença
Partilhar é propenso e constante princípio 

Vão-se as razões que a ilusão reinventa
Enquanto lágrimas molham as areias
Do coração feito ilha ou precipício

Chora-se de dor e prazer
Por destemor ou sofrer perverso e intenso 

Meu verso detem essa lâmina de dois eus
Aposta teimoso no apogeu o que vivencio
Recorta em traços esse lado oposto do adeus

Enfim vive pleno em silêncio
Ainda que persista em amar sozinho

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SAUDADES

Já senti saudades diversas
De momentos
Épocas
Lugares
Pessoas

Nenhuma tão forte em mim ecoa
Quanto essa que me atravessa
De uma conversa boa

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AGORA

Eu me divertia andando sobre linhas desconexas
Como se passeasse os pés sobre molengas cordas
Equilibrasse e destemido avante fosse e as avessas
E até pulasse com pernas firmes as horas bambas
E em nada segurasse exceto nas bordas da esperança

Agora acesso as calçadas entre rampas
Com receio de escorregar pelas lembranças

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INCAPAZ

Não moraria em tua aldeia
Cercado das feras e matas
Sou nativo da cidade
Onde o asfalto me rodeia
Jamais trocaria o conforto
Pelas nuas trilhas de areia
Cristalinas vidraças luminosas
Por paredes encharcadas de poeira
Sou o moderno ar da cobertura
Acima dos segredos das colinas

Mas ah, como tudo é tão incapaz por aqui!

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AO TOPO DO MUNDO

Fui ao topo do mundo por aromas
Não senti teu perfume
Vigiei as profundezas marinhas
Desenhei tua imagem
Escrevi poemas de nuvens
Não li as tuas mensagens

Descobri que estavas aqui
Tão rasa quanto as viagens
Que não empreendi

E que amar afoito é pura bobagem

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ESCRITAS

Depois de passeios densos por palavras
Encantado em meio aos versos
Divertindo-me com estrofes
E nutrir parcerias a tanta rima explícita

Descansar entre ideias íntimas
Cultivar frases distintas por ilusões
Jogar junto ao sonho diverso do fonema
Zarpando entremeio a retóricas e sofismas

Ainda que o fio da sintaxe
Porventura me corte a garganta
Não fiz sobrar tempo vasto
Senão para as escritas:

Oh, valeu a pena
Cada verso de poema

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PARCEIROS

As tempestades aparecem
E nos assombram
Quando chegam
Perturbamos para enxergar o que ficou
Se alguma coisa restou no lugar
Sem vergar exaurir sem quebrar

As tempestades acontecem
E nos assombram
Quando passam
Convocamos até os risíveis laços
Para refazer os estragos
Remendar os trilhos que truncaram

Não estamos acostumados aos dissabores
Aos destroços dos descaminhos
Não podemos consertar sozinhos

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LEMBRANÇAS

Somente teu hálito quente
Aquece o frio dessa laje
Como lápide ao sol
Quando o dia morno morre

Sempre e repetidamente
Habitam em mim sensações diversas
E toalhas de paciência
Encharcam porque me secam
Os papeis das conversas
Sobre tantas e tantas andanças

A cada instante que me ocorre
Vivo das delícias que me acercam
E são tantas que me torno um fardo
Farto de lembranças

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ANTES SÓ

Antes só me era permitido entender
Quase nada além do necessário
Compilei quão frágil a cegueira toma
De arrasto o tempo que não se pode ver

Depois ousei enxergar ainda que não visse
Sequer alguém além da redoma

Quebraram-se as vertes e as dobras
E os anelos das cortinas

Antes só me era permitido acreditar
Sem sequer a razão da dúvida apropriar-se
Dos paradigmas quando se indaga
A verdadeira visão por respeitar

Assim tornei mansas as batalhas
E amenas as causas por elas supostas

Ainda vivo como dantes
Mas não mais só sem respostas

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ESCREVO

Escrevo
A quem escreves filho meu?
A qualquer passageiro de amanhã

Para alguém que desapercebido
Tropece nas letras e arrebente as palavras
Ou nelas se enfurna e as remete a outrem

Ontem eu lia
Escrevo agora sobre o papel disforme
Entre o homem e sua fome
Em nome da poesia

Acontece escrever também
A quem não consome tempo em arte
Escravo da cegueira que lhe arde
Nunca sabe
Não viu nem lê

Escrevo
Antes que anoiteça e eu vá
Ou seja tarde

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COMO SOU

Mesmo sem ver o céu de hoje à noite
Porque as luzes do chão
São mais fortes que as das estrelas


Ainda que não ouça a cantoria dos mares
Os sons das ruas me interrompem
Todos os ciclos que me vem como açoite


Até as minhas mãos andarem distantes
E os passos que der estarem muito aquém
Donde os pensamentos me enlevam


Negligente é a tradução desta realidade
Que torna irreconhecível o meu entorno
Apesar de escancarada credulidade


Porque nem tudo é possível
Se a vida é verdade
Como sou improvável?

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PROVA DE VIDA

Perco a identidade
As mãos cansadas não produzem digitais

Sem as linhas os dedos aniquilam
Despersonalizam ante o incerto
Como me suprimissem do espelho

Não bastassem as senhas
Nem afirmativas de que ainda sou de verdade
Precisa um pouco mais ao demonstrar o que valho

No entanto não aceitas o argumento
De que gastei os meus dedos digitando versos
E as palavras que escrevi por mais que as leias
Não trazem o valor do desenho particular e íntimo da pele
No templo já velho onde habita esta minha alma

Creio que o sistema anda amorfo
Ao inverso a esta altura
Restar vivo é falho

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A LUZ QUANDO FOGE

A luz quando foge escurece o canto
Nem por isso o lugar perde encanto
Se a contento não se vê iluminado

A escuridão não é caos e sim ordem
Claro seria a definição apenas de um lado
Pois a mente tende a refugar o lúgubre

Acima do pressuposto ato falho
Cremos que a presença do breu seria anormal
E não por inverso a plenitude

Tola crença quem somente enxerga
Sob o foco de um mesmo raio
Desleixa o coração que aclareia o opaco

Se faltarem todas as cores inclusive o preto
Que jamais degenere o que age em secreto
Porque segredo é coragem e não apenas medo
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ALEGRIA

Verto águas de maneira fácil quando rio
Como se um mar volvesse meu íntimo
E os olhos lacrimassem pela face

Com a intensidade de um grito

Esse irresoluto coração é um quarto

Desse casario chamado corpo
Por estar vivo se diverte com a arte
Absorto intervive cada parte
Para que nunca me quede morto


Chego a ter calafrios de arrelia

Dá-me cócegas a tristeza

Por isso choro insaciável
Acometido de alegria

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PAIXÕES


Por qual labirinto afunila minha ira
Se quando calmo esqueço ter sido insano?
A raiva desmedida dilata a pupila
Remexe por dentro onde habita o profano

Homem desesperado à cata de Deus
Somente Ele é capaz de amansar-nos o humano
Junto às enigmáticas elucubrações

Tem piedade pois de mim que exagero
No apetite ante a gula da ofensa
Para que a voz da razão nos resguarde
E o ódio jamais vença nossas paixões

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GRAÇAS


Pensei todo dia plantar uma árvore

Nas longínquas terras do meu País
Pelas rodovias do meu Estado
Ao longo das estradas de meu Município
No largo das avenidas da minha Cidade
Ou nas ruas de minha Vila


Elas cresceriam floresceriam frutificariam enraizariam

Convidariam pássaros sombreariam
Procriariam lagartas cigarras formigas
Atrairiam cupins

Porém são apenas glebas virtuais


Pensei começar pela estreita calçada

Contigua ao meu minúsculo quintal

Mas se as planto fora de casa

Elas se assanham espreguiçam largam folhas
Invadem os seus direitos e você acharia ruim


Desisti desse intento

Hoje somente faço poemas
Estes cabem em mim


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MISÉRIA


Sem luz a mata perde as cores

E metade do mundo quando é noite
Não come
Não por falta de fome
Nem por falta de dinheiro que compre
Também não por carência de alimentos


Não come por estarem dormindo acometidos

De grave dor no pescoço e na língua
Que os impedem de terem acesso à vida
De já não terem o paladar mais pela boca
Que não desperta mais a libido
Quando todos os manjares ausentes
Não fazem sentido além das vontades
Coibidas


E quando chega o sol

Ainda amam e sorriem
Ao pedir um prato de comida

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APESAR DE IMPERFEITO AO MENOS SER JUSTO

Um monte de gente feriu-se com a peste
Ainda restamos nós para contar a historia
Talvez sejamos a sobra da humanidade
Por algum motivo estarmos vivos agora

Mas não só da peste se escapa ou se morre
Diz-se que ninguém se vai antes da hora
Empreender esse estágio deve ser nossa meta

Há tanta gente no entanto sem dor e já morta
Debelada por dentro estirpada por fora
Que se ainda lhe sopra o santo verbo da vida
Em vão desse dom faz uso e de forma indevida
Cego usurpa escraviza ultraja maltrata
Se achando imortal desdenhando o destino

Ainda que exausto cabe um custo ao pedreiro
O de andar por inteiro a brigar por equidade
Abraçado à carência de quem pede uma esmola
E de dedo em riste combater peito aberto
Enfrentar poderosos e sempre verdadeiro
Apesar de imperfeito ao menos ser justo

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INVERSOS

Benedito Poceiro sempre dizia
'No buraco onde passo o dia
Busco agua para quem à flor da terra
Logo mais possa matar minha sede
Mas não a desperdice'

Uma vez uma lata com lama revolta
Caída da borda lhe partiu a cabeça

Foi-se o dito pelo não dito lá no fundo
Soterrado no fosso cumpriu a sentença
Houve menos agua gasta no mundo

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ENTRE A NOTÍCIA E O POEMA

No meio do quarto despiu-se por inteira
E já saiu do banho com a roupa de dormir
- Um florido e confortável pijama
De pernas e mangas bastante longas
Que apesar de folgadas ajustavam
À moldura ziguezagueada do seu corpo

Olhou pela ultima vez o celular:
UOL - "Dormir Nu Traz Mais Qualidade De Vida"
ESCRITAS.COM - "José - Poema de Carlos Drumond de Andrade"

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MINHA ESCRITORA

Essa menina nem sabe ler
Já põe o livro em seu instante

Estala as frases pagina as folhas
Rabisca as páginas com giz de cera
Reescrevendo à sua maneira
Novas histórias com outras letras
Nas prateleiras pela estante

Depois cansada deita serena
E faz com livros seu travesseiro
Cobre com as linhas as suas pernas
Colore as capas com os cabelos
Ilustra os contos de belos versos
E acorda rindo dos próprios sonhos

Minha menina nem sabe ler
Já ousa ser grande escritora

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BORDEJAR

Quão boa e nobre a sensação de circundar esse oceano
O sereno passear pelas bordas do teu lago intenso
Rudes ondas te escondem sob a saia de bons sonhos
E eu navego velejo tergiverso pairo sem querer voltar

Essa a arte verdadeira de bordejar sem pressa
E ao mesmo tempo apressado para alçar teus olhos
Ver-te precisa entre as ilhas da pele e as algas dos abrolhos
Dourados ao sol do norte ou ao vento minuano nos cabelos

Teu dorso é orla onde rola entre o pelo areia e sargaço
Abrigo e alimento da fragata de silhueta esguia
Essa arisca ave que guia meu mar escuro de ilusão
Quando alerta meu juízo das tempestades e marés
Quando vem quando passam quando advirão

Recolho-me à sensação de sentir toda a certeza
Dos rumos que as correntes irão singrar meu barco
Nalgum porto qualquer pelo teu corpo em viagem
Cuja miragem me distancia do cais e se apequena
E se eu perder-me em meio a essa correnteza
Salva-me com tua língua lambendo este poema

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MENINO

Quando a infância passa
Parece que o mundo acaba
Parece que passa o mundo
Quando a infância adolesce
Quando parece que o mundo acaba
Parece que a infância passa
O mundo parece que adoece
Quando a infância acaba
Quando a infância passa
O mundo parece que passa
A infância parece que acaba
O mundo parece que adolesce
O mundo adoece ou renasce
Quando passa a infância
Quando adolesce a velhice
Quando rejuvenesce a infância
Quando o adulto acaba menino
Quando o menino adolesce

E a gente envelhece?

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FINADOS

Quem passa no derredor dos túmulos
Curioso lê os espaços resistidos
Entre uma data e outra
Sobre as lápides agravadas


Há quem tenha restado menos

Há quem tenha permanecido mais
No entanto todos experimentados
Os cúmulos da existência
Ao ter reaberto os olhos
Ao ater respirado o ar
Dito qualquer palavra
Ouvido além do silêncio soar


Quem passar pela minha cova

Imagina-me deitado sem cor
Sem ouvir mais nada da vida
Imóvel e sem falar
Como se nem estivesse ali
Como tantas vezes antes fiz


E ainda que haja dia ano e mês

Não tripudie do que o tempo quis
Qualquer hora será tua vez

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COMUNIDADE

Há um dente meu doendo
Apiedo-me com a dor nele
Sofrendo eu por inteiro


Os demais dentes que ali convivem

Incomodam-se do sofrimento ruim
E comigo a mesma dor dividem


Como acontece com as mãos

Quando um dos dedos arde ou sangra
Todo o meu corpo desanda


Deveria ser assim entre irmãos

Caso um não esteja bem
Ninguém estará bem também


Como os dentes convivem na boca

Como os dedos residem entre as mãos
Dividimos num mesmo peito um só coração

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AQUELE QUE ABARCA O LOUCO

Genial aquele que abarca o louco
Quando a dor senil se desdobra
E lhe sobra parcimônia e tolerância
Para entender suas escolhas

Eu conheço apenas os insensatos
O resto que se descubram
Tadinho de quem lhes deve
Coitados de quem os cobram

Jamais tome emprestado outro dia
Achando que valha um tempo
A velha navalha raspa e apara
A aridez do pensamento

Sou discípulo do momento cego
Por isso me apego indecifrável
Aos apelos do conhecimento
À inefável sentença do fogo

Onde o ego atinge a cinza
Extirpa-se e a vida se apaga
Estoura a bolha da lucidez
Mas o amor jamais acaba

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O SUMIR DO SOL

Feliz daquele que observa ainda o sumir do sol
Na linha flamejante do horizonte
E que da mesma forma o torna aceso
Reluzente no aguardo das manhãs seguintes


Daquele que no interstício solar admira estrelas

De quem em qualquer jardim
Prevê de um botão aparecer uma nova flor


Feliz sou eu por ter no amor resguardadas

Expectativas irreversíveis de revê-las

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MORRO DE CONTENTE

As casas fincam os pés na terra
Para que as intempéries
Não demovam suas sólidas sapatas

Pelos cômodos se espalham moveis
Cujos pés e pernas os tornam fixas sentinelas
À espera de quem os visite ou more

Quem passará pelas portas
Quem irá assistir das janelas
Quem deverá expulsar a treva acendendo as luzes
Expurgar os defeitos por dentro delas?

Todo prédio tem seu muro que delimita o quintal
Adversa e alerta que se respeite o portão
Portal donde livres transeuntes são as ideias

O coração é esse imóvel enraizado nas veias
Aguardando que amores e amigos venham
Habitem os sentimentos mais íntimos
E se espalhem seculares entrementes

Ainda que isto demore
Bem sabes que se moras no meu peito
Morro eu inquilino de contente
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NO ENTORNO DO FOSSO

Passeio de elevador
Mas temo que se soltem os ganchos
E rebelde ganhe os céus


Como saberei descer se tenho medo
Da altura da tua voz e do teu olhar?

Tua voz acusa e declama-me
Teu olhar seduz o que me vê

Não posso descolar da terra
Ir parar nas nuvens
Nem com os ventos por elas seguir

Portanto não destampe os edifícios
Cuide para que não se destelhem
E não me elevem além da cobertura

Está cedo
Ainda há poemas a fazer
No entorno do fosso

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POR UM FIO

Ainda não estou tão morto porem já frio
Lenta a vida pulsa
Estivesse febril haveria repulsa
A morbidade expulsa a réstia de luz
E a morte avança avança

Quantas solas de calçados
Pelos passos caminhados foram gastos
Quantos rolos de papel
Limpando o ânus por esses anos usei
Emendasse os cabelos pelas pontas
Em separado que distância os cortei
Fizesse as contas do volume mastigado
Quanto fora comido e devorado
Calculasse os olhares lançados
Distâncias alcançadas simplesmente admirando
Quanto foi suado quanto arrepiei
Quanto desejado quanto já gozei

Quanto de lágrima fora vertida
Por todos os motivos chorados
Quanto de agua lavando a alma
O corpo e a mente sempre maculada
Quanto sono então dormido
Com sonhos ou sem que os lembrasse
Quanto de dinheiro amealhado
Quanto gasto quanto resta a receber

Quanto trabalho concluído
Quanto construí sem saber
Quantas unhas cortadas
Quanto sangue escorrido
Quantas palavras pronunciadas
Quantas precisaram engolidas
Quantos espirros quantos sorrisos
Quanto ar aspirado quanta bufa já soltei

Quantas mentiras creditadas
Quantas verdades soltaram-se desatinadas
Quantos nomes já clamados
Quantos ainda chamarei
Tantas dores tantas máximas
Restarão ensimesmadas

Ainda nem mais nem menos vivo
Porem ainda morno
A vida por um sopro
A morte por um fio

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REERGUER-SE

Um dia passei a língua de encontro a terra
Não levei voluntariamente um torrão à boca
Mas fui impelido ao chão de rasteira

Eu raspei no solo todo o corpo e a cara

E provei o gosto daquela crosta rara
Que teve para um mundo e meio
Inigualável sabor de tombo e chacota

Ouvia dizer que aquela terra era ruim

Que não tinha valia por ser íngreme
Pedregosa e tão poucamente aerada

De fato aonde a minha língua lambeu o lugar

Pareceu-me um pedaço amargo exaurido de nação
Destes onde as santas putas parem exacerbadas
Filhos sem pais em estado aleatório e decrépito

Mas não era escarpada nem putrefata aquela terra

Tinha sim o sabor denso das raízes e de fértil lama
E o intenso cheiro de pelo ralo em molhada pele

Duvido que alguém possa governar um país

Sendo eternamente tirano por derrocar seu povo
Ainda que nos arruínem e nos debulhem às feras
Sempre seremos pátria e nos soergueremos de novo
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NÃO TENHO PRESSA

Ninguém se importa sendo a carga leve
Quando o fardo flutua ou flana
Sobre o ombro de quem o leva

Poucos se importam porque a vida é breve
E essa brevidade aparente
Aparenta imortal e eterna para quem a vive

O farto mundo do outro engana quem o observa
Ilude o sossego e acende a inveja
Contrapõe-se à paz que cada um almeja

O peso da carga mede-se pela interna beleza
Daquele que a suporta ainda que a meça
E se destroça e esforça para que a ela mereça

Não sou usurário e a nada me apego
Apenas sigo carregando meu ônus
E confesso não tenho pressa
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INTERGALÁCTICA

Em outro planeta nem todo longe da terra
Cada dia distende ainda que seja domingo
Às vezes por causa da segunda antes encerra
Ou mais cedo inicia por suceder a um sábado
Se indispõem com a hora exata na fração dos segundos
Cedendo aos caprichos da preguiça ou vontades

Caso morresse a luz e o azul de todos por lá cansasse
Sair do caos tornar-se-ia a inexigibilidade galáctica
Poucos fariam para extirpar do perpétuo o escuro
O desconhecimento surreal de qualquer futuro
Não se preparam para o diferente do agora
Pouco importaria se deixará de ser reverso esse ciclo

Alguém precisaria lhes alterar o calendário
Pudesse contar-lhes o dia enquanto o sol claro ressurge
E encerra-lo no prelo advir da noite verdadeira
Então essa ilógica contagem surreal de lá mudaria
Haveria um só gênesis e não mais genealogia
Seria transposta a era da disritmia à do retorno

O homem por lá se igualaria a todo ser vivente
Ninguém diferente seria do mar e das montanhas
Naquele planeta nem todo longe ou distante da terra
Seria como por aqui onde há bonança e a vida plena impera
Mas não se deve jamais intervir em outros mundos
Sob pena de perdermos por quase nada nossa paz interna
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ESSA SUJEIRA NOSSA

O mar não suja só expurga
A mata não suja somente expele
O deserto não suja talvez invada
O rio não suja às vezes inunda
O céu não suja apenas recobre
A terra que teimosa se renova

Na astuta ação do ímpio sujeira abunda
Onde o germe maledicente procria

A mente gera o que não deteriora
E a mão da gente inconsequente mela

A natureza do mau espalha delinquências
E nos põe constantemente à prova

Todo dia nos acovardamos calados
Ante a crueldade que destroça

Essa sujeira do mundo é unicamente nossa

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QUEIRA OU NÃO QUEIRA

É o olhar o mais tenro gesto da sabedoria
Pelo olhar dá-se o gosto do poema
Através dele se ouve os passos da poesia

Cheira a gerânios quando o encanto peneira a tarde
E a paixão enxerga o menino que aceso arde
Na febre efervescente do dilema

Não são os olhos pois estes nem sempre veem
Mas sim o sentido exato de encarar o mundo
Por nuances jamais porventura vistas

As ruas entre línguas se cruzam ligeiras
E as palavras proferidas são descritas
Nas placas espalhadas das esquinas

Ninguém perde o endereço nem o ritmo da andança
Se os olhares intercalam os percalços da cegueira
Queira ser o destino de cada um ou não queira

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A MELANCOLIA

A melancolia por vezes bateu à porta do justo
Sem conseguir esmaecer-se

Da primeira tentativa nasceu o peregrino
Assim saíram  a caminhar
juntos
Na oportunidade seguinte emergiu o eremita
E trancafiaram-se ambos em profusa solidão
Por terceira via eclodiu o imprudente
Que inconteste os instigou a loucura completa

Por fim fez do sonhador
Um iludido se achar poeta

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SANCHO MODERNIZADO

Era ele menino
E da janela contemplava o quartel

Achava que patentes, inclusive a de capitão

Entre o quepe e a farda abaixo do pescoço,
Ostentavam mogno, cedro, mármore, aço, pedra-sabão
- Mas nenhum algo frágil,
Tipo pele, carne, vermelho sangue, osso e coração

Vendo o rei seminu agora envolto em fios e eletrodos

Aos pés do capelão, com pança tão protuberante
Olhando-se no espelho e vendo o quanto similares

Revestiu-se da ideia de também nalgum dia

Se tornar presidente!

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BRIOS


Certo rio certo dia deixou de viajar

Empoçou suas aguas entre bancos de areia
Cansou de invadir o mundo das barrancas
Perdeu-se nas próprias pedras e beiradas


Um senil pescador que nadara em seu fundo

Chorou sete dias e viu que as lágrimas
Corriam saudosas no regalo do leito
E que naquele peito vida ainda haveria


Reuniu lá da vila todos os condenados

A viver sem futuro por falta de brios
Despertou-lhes a fome da fartura de peixes
E os levou para a ponte já sem necessidade


Juntos simplesmente insanos sonharam

Com a correnteza refeita novamente fluindo
Assim conta-se que o rio voltou a rolar
Mas já não sei confirmar pois mudei de cidade

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FORA DE LUGAR

Bom seria contigo uma xícara de chá
Vinho brando champanhe ou terroir
Seria estranho não partilhar a bebida
A nossa frente sem compartilhar ideias
Deixar de silêncio ou ficar sem se olhar
Balbuciar doidices chamar o nome
Despretensiosamente confidenciar

Acho que o chá na taça e o vinho na xícara
Após tanta fala seria desnecessário cuidar
Das palavras ou algum nome fora de lugar

Valeria fechar os olhos para achar o sonho
Tornar-se vulnerável intruso confidente
Despretensioso endoidecer por amar

Estranho nem sem beber nem bem sonhar

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PACIENTE

Meu barco fazendo agua
Seria isto suficiente para um breve desespero
Sinal de alerta para qualquer jovem marujo

Ah o velho marinheiro continua seu curso
Remando paciente buscando o cais
Uma vez já mais perto que distante do porto

Essa a lição da maioridade
Desprender-se do casco ainda que erroneamente nade
Ir adiante mesmo que convalido definhando afunde

Pela certeza de chegar a qualquer ponto
À frente ou abaixo do esperado encontro
Há o acaso entre o azar e a sorte de haver partido

São assim as conquistas os amores os sonhos
As paixões que traspassam o turbilhão do tempo
Somos todos navegantes desse mar
incerto

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TOLICE

Crio um parêntese no meu dia

Paro para olhar a chuva na porta aberta
Com o frescor do respingo teimoso na cara

O cair da agua chiando demora
Retorno ao poema salvo na tela

Quanta tolice comete o poeta
A poesia acontece ali fora

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VAGALUME

Vivo iludindo meus sonhos aclarando espíritos
Como faz o pirilampo que afugenta o escuro
Tornando-se fulgente entre abelhas e mosquitos

Encanto-me com singelezas acendendo ideias
Em pleno espalhamento da luz porem sem ser estrela
Ilumino a minha casa com o fulgor da própria asa
Com mínima e parca energia imanente das colmeias

Entretanto espia-se o brilho e pouco importa se ligeiro
Sinuoso esvai-se ao breu como escorre o tempo
No inconsequente entremeio existente entre as fendas
Por mais que se apertem os dedos o que importa é o legado
Mútuo entre mestre e aprendiz seguido por primeiro

Alguém ao aperceber-se talvez da ousadia do vagalume
Possa invejar ou julga-lo por seu lampejo fugaz
Ser de pura insensatez querer se almejar lanterna
De minha parte porem desejo unicamente que a luz
Independa de brilhar mas aclare áurea e alma
E fortaleça nosso ser tornando a vida mais bela

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OLIMPÍADA DO TEMPO

Tanta gente morre nessa olimpíada do tempo
Enquanto sigo eu narrando esse jogo
Assistindo ao espetáculo
Hesitado em ser adversário e autor
Ator de papeis de múltiplas novelas

Sou o cão absorto olhando o futuro
Estendido incompleto se vendo no espelho
Quarando os miolos num sol de primavera
Com as patas no chão e o peito arfando
Docemente esperando que alguém acorde
E caminhe ao meu lado por dentro e por fora

Pois minha ousadia no cotidiano
Sem sombra de dúvidas e por iniciativa
Esmurra o ócio e entreabre janelas

Somente assim se vai ao mundo
Eu conquisto cada minuto que me espera

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SEM GRAÇA

A praça
Oferece árvores flor e jardins
Passeio gramado e calçadas
Porém está deserta

O deserto
Acolhe pessoas carros e dunas
Vasta areia a céu descoberto
Porém sem jardins

O mundo é canteiro
Fértil de escolhas


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ACINTE

A loucura é possível acinte
Desconexo incidente intrínseco da mente
Daquilo que arrebenta a origem
Complexa mutante do todo
Transeunte sob a finita face reticente

Pressuposto acidente acontecendo e ocorrido
O horror escorre feito sangue
E traz o torpor por desdobramento pendente
Mordido e absorto pela dor
Espúria e contundente

Vivendo de modo aturdido
Eu louco advirto e previno-me incólume
Antes que a lucidez me raspe o juízo
E eu ache demente e sinta-me impune
Ante todo ser vivente


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NÃO CUSTA NADA

Estreita ou larga toda estrada
É saída ou entrada
Retorno ou partida

Nenhum transeunte
Tem de si idêntica jornada
Fosse repetir sua estada

Ainda que aparentemente
Seja a mesma viagem
Num único vagão
O amor e o ódio têm entre si
Igual caminhada

A vida não estaciona à margem
Da hora parada

Se o preço do apreço é um só
Tornar-se melhor
Não custa nada

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AINDA AGORA

Desde domingo reconto as horas
Enumero os anos
Domino o menino que foi embora
Embora ele venha a qualquer hora
E se valha do velho que existe agora

Se velho não seria ainda
Talvez antigo nos preceitos
Usual nos conceitos diria aprendiz
Generoso por inteiro e arteiro
Aquele que revalida a própria história

Não faço questão dos demais dias
Se desde domingo decanta o tempo
Que afunila e desprende a fagulha
Que ainda acende a vaidade de outrora
Mesmo que a validade da idade desentoa

Tem sentido ter duplo medo
Só não preciso alarde e espanto
Quanto custaram-me bons segredos
Advindos do que serviram antes
Aguardo-os que me valham ainda e agora

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NASCI

Não chorei porque nasci
Não senti o corte umbilical

Chorei somente no momento seguinte
Para que alimentassem a fome
Do tênue ar a carne que me trouxe aqui

A primeira lição foi respirar
As demais adquiri

Ademais sobrevivi

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QUE FIZERAM DE MIM AS ESTAÇÕES


Fria manhã de inverno
Lá fora a relva úmida
Exala interno sentimento
De que o âmago da vida
Resume-se a meras palavras escritas
Guiadas por pautas traçadas
Em branca folha de caderno

Iluminada tarde de primavera
Lá fora jorram cores
Por nuvens claras de cera
Onde os olhos reviram de amores
As promessas ilusórias
Descritas entre quintais e jardins
Em belas pétalas de flores

Quente noite de verão
Lá fora entre luzes acesas
Descansam as sobras do dia
Vertentes da escuridão
Digitais gravadas na mente
Prescritas fórmulas
Reverberando alegria

Soberba madrugada de outono
Lá fora dorme a natureza
Espremida entre silêncio e breu
Nem tão quente nem tão fria
Remando as barcas do tempo
Vagueiam sonhos tardios
Repletos de astucia e pureza

Que fizeram de mim as estações
Presas a tantas e todas que vivi
Uma parte da vida bem as senti
Outras me voaram por indícios
Sou eu ator partícipe destas cenas
Ainda que as traga em círculos
Recompostas de lembranças

Se sorri ao ouvir gritos
Ou gritei ao me ver sorrir
Misturei meus labirintos
Transpus máximas e os venci
É porque observei lá fora
Que o passado está aqui dentro
E o futuro efeito incerto do agora

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ENTRE VEDAS E MUDRAS

Ela alça suas dobras
Com seus passes de yoga
Flexiona as belas pernas
Recolhe os braços de antenas
Mobiliza as nuas costas
Massageia id e ego
Com mantras de Om Namah Shivaya

Apensa entre exercícios
Sorri silencia sua escolha
De infinita criatura
Como navegante insinua
Após transpor precipícios
Tão volúvel pousaria
Nas entranhas do Himalaia

Passa a língua entre os dentes
Imóvel nem gesticula
Apenas pensa-se e fecunda
Inteiro estado de graça
Desvenda as nodas e traços
Entre vedas e mudras
Orvalha encharca se molha

Pudesse eu entender se
Quando o êxtase passa
Se deusa intensa humaniza
Ou mais sábia resiste
Transmuta o sonho em espelho
Contemplando-se pudica
Delicia afeita em malícia

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APARÊNCIAS

Na beira do campo entre a grama
Há uma singela flor amarela
Num frágil talo verde sem prumo
Que a ostenta pouco acima da relva


Enquanto a mansa brisa perpassa por entre as ramas

Sobre as macias folhas um gesto breve aparentemente a deita
E verga suas pétalas num balanço suave
Como a alma estendesse o próprio corpo sobre a cama


Garoto olha atento

Não julga o rude vento por autor desse movimento
Foi apenas o pouso maroto
De uma gaiata borboleta


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AH MARIA!


Se a visse outra vez do meu lado passar amaria a fumaça

Se a visse de mim desprender-se amaria as centelhas

Se a visse de algum ponto partir amaria as fagulhas

Se a visse na curva dos olhos sumir amaria as saudades


Se a ouvisse novamente voltar lhe seria dormentes

Se a ouvisse surgir lhe amaria os brilhos

Se a ouvisse então retornar amaria seus sinos

Se a ouvisse chegar nesse horário te acolhia nos braços


Amaria embarcar na primavera e por todas as plataformas

Deslizante entre os vidros a poeira e o vento nas janelas

Passageiro que sou das emoções rotineiras

Encravadas no banhado sertão das estações pantaneiras


O fogo e o vapor em sua imensa caldeira

O rugir das roldanas no aço dos trilhos

Chiando longínquas ou no meu travesseiro

Vislumbres da idade seguindo trilhas boiadeiras


Amaria seu cheiro de estrada de ferro e madeira

Amaria o arrasto das pegadas nos vagões de areia

A deserta incansável ausência de ilusões que se foram

Apelos do coração de paixões verdadeiras


Enfim vieste de viagem soberana vestida de estrelas

Que extasiado brindo eu à vida feliz por revê-la

Ah Maria Maria atravessará o tempo que lhe é pertinente

Enquanto eu num repente cá estou de passagem

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HORIZONTES

Nasci entre caudalosas lagoas de rios

Por cujas beiras de areia crescera a cidade

Mas eu na contramão das aguas

Deixei de aprender a nadar


Mal molhava os pés

Já antevia possibilidades de afogamento ao lacrimejar

Chorando assim embainhava cismas e medos

Recomendados por meus pais


O fim daqueles dias também morria todas as tardes

Abrasado entre as correntezas

Mas subitamente emergia na oposta margem das manhãs


Eu não entendia aquele fascínio caprichoso do sol

E como jurara viver para teimosamente revê-lo surgir

Sentia vontades mas acovardado com ele eu não fora jamais


Agora distante daquelas doces aguas e na borda do mar

Espero sozinho o sol trazer-me os mesmos brilhos de outrora

Pois sei que ele ainda se perde naquelas aguas distantes daqui


Não mais choro nem de medo nem saudades

Pois descobri os significados de ocaso e aurora

Idêntico ao sol que intransigente pra dormir

Cruza resoluto e aclara a pequenez dos meus sonhos

Ante a imensidão do meu país

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ACASOS


Por fechar os olhos

Vislumbrei os meus sentimentos

Até então eu não os tinha nem claros nem livres


Foi no fixo breu dos olhos fechados

Que se tornaram iluminados

Libertos por estarem soltos

E de mim tão pertos quanto breves

Que os achei redescobertos pelo rosto


Fechar os olhos deveria ser tão contínuo

Quanto mantê-los despertos

Afinal é quando nos redesenhamos mórbidos

Que o encantado estado das coisas

Revela-nos como somos


Então a morte seria a profilaxia do acordado

Ou a esdrúxula condição do sono?

Metade de mim é essa arte que se reverte e desperta

Todo o resto é a outra parte

Que recobre de acasos meus atos


O portal do tempo é o parto




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ANDANTES

Quando passeei meus sonhos pelos teus cabelos
Encontrei razões de não estar sozinho
Sozinhas minhas mãos não iriam por teus pelos
Não fosse o sentido de fazer carinho

Quando viestes flutuante beijar minha sede
Descobri o bom gosto do arrepio da pele
Sozinho jamais estaria suando os poros
No roçar dos lábios úmidos que o desejo impele

Se descalço andei por todo o teu corpo
Permitistes vir de intensas viagens
Mapear sensações preparando gozos
Próprio de quem envereda por tenras paragens

Dão-se as mãos ávidos mutuamente amando-se
Enamorados sentimentos de amor e ternura
Nenhuma razão haveria não fossem pensantes
Os segredos íntimos arrítmicos de toda criatura

Olhares, palavras sussurradas, êxtases
São doces cantigas embalando andantes
Passeemos separados porém virtualmente
Vimo-nos amando-nos, sentimo-nos amantes


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DEUS FEZ A FOME

Deus fez a fome de todos nós

O tempo exato de suporta-la
Cabe à generosidade e consciência
De cada ser e oportunidades

Seja insípido amargo insosso ou de sal
Aquilo que nos alimenta agora
Igualmente deveria dar-nos fome de Deus

Ou dele saciássemos
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ÂNFORAS

O poeta deita seus versos nas virgens talhas de barro
Como faz o vinhateiro com o néctar de suas uvas
E se não saem a contento elemento e contexto
Aguarda paciente o tempo moldar os seus erros
Ele cura a acidez dos vinhos e a turbidez das bebidas
Cicatriza a flacidez das vinhas e açoda seus frutos
Propicia o prazer da colheita como faz um beijo
Onde as palavras adormecem ébrias nos lábios
Cínicas sedutoras sedentas e loucas de desejos

Nossos corpos são preciosas e esculpidas ânforas
Em cujos vasos efervescem espírito e almas
Onde cada palavra decanta seus significados
E se mantém características aos sabores da terra
Ao palato das raízes revolvendo os solos
À pureza das campinas verdejando os elos
Apreendendo sentido à verve sorvendo a safra
Servida ao surreal inaudível som do espaço
Transbordando floridas eras da colheita à taça

Envasa os seus poemas em mágicas estrofes
Como faz o vinhateiro escolhendo as jarras
Lendo títulos rótulos descrevendo aromas
Degustando ervas raras combinando espécimes
Tanta poesia vivos sonhos íntimos ideais
No entanto perdem-se nas sarjetas e estradas
Quando uma nobre bebida na garrafa é quebrada
Quando as mãos cruelmente mantém escondidos
Os livros de um poeta com suas páginas fechadas
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ILUSÕES

Depois de estender seus amores
Sobre ásperas tábuas e aramados
Ele encontrou-se sozinho estirado
Como se nunca tivesse amado jamais
E somente às vezes doeram-lhe
Tais indesejáveis enroscos e tantas esperas

Sentiu por todos as mesmas dores
Vivenciou idênticas desconfianças e alegrias
Percebeu que nem tudo fora a seu tempo
Encomendado pelo inócuo coração já cansado

Não considera acerto o que dera certo
Nem inoportuno outras possíveis reversões
Aprendeu entretanto que amar é necessário
Tanto quanto livremente passear o pensamento
Por todas as suas diferentes versões

Agora amarrado às próprias experiências
Conclui sua jornada à sombra das sobras
Intimamente chamadas ilusões

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SONETOS ESQUISITOS


Sonetos esquisitos para ninar mosquitos

Sem pé nem cabeça, nem asas, ferrões
Zunindo em volta das luzes feito insetos
Morando sob imundas lápides e porões


Justamente onde adormecem insensatos

Aqueles que subjugam os semelhantes
Que se julgam mais humanos porque podem
Esse poder aparente e podre de aparatos


Sonetos que exaltam a voz do povo

Por isso seguem por veias entupidas
Limando quaisquer restos de inconsciências


Unindo-se à dor de injustiçados

Meus versos destes sonetos esquisitos
Riem fartos das tuas inconsequências

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ONTEM, HOJE, QUASE TODO DIA


Ontem, hoje, quase todo dia
Passeamos pela praça da saudade
Rememoramos passado e utopia
Que fomentam os sonhos fartos da poesia


Num fechar de olhos se viaja

Por estados que a mente vasculhou
E a qualquer próprio momento interaja
Com o presente que num instante já findou


E nesse rio de caudalosas e profundas águas

Seguem o curso prazeroso da memória
Sentimentos de que sempre se repetirão


Outros atos de satisfação ou duras mágoas

Pois assim nós escrevemos nossa história
Misto de penas, desejo e gratidão

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PEDREIROS POETAS


Não, não sou poeta pelo simples ilógico querer
Tanto que por vezes incomoda-me a poesia
Poderia estar gozando de outras formas de prazer
E justamente estar lendo o que alguém outro escreveria


Mas quando isso acontece eu me despeço da leitura

E vejo-me no involuntário clamor de fazer poema
Some do meu derredor todo o concreto da existência
Entrego à minha mão o verbo que a mente ordena


Então vou construindo palavra a palavra os seus anexos

Como um oleiro funda alicerces de argamassa e argila
Depois edifica casas absorto no suor do rico ofício


Quando se vê encontram-se ambas lapidadas, concluídas

Mais uma e outra e outra obra predicadas do Arquiteto
Feitas de magia, sonhos, barro, sintaxes e raros versos

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UM MESMO SONO


As minhas mãos tem luvas

Assim posso tocar despreocupado

Em tuas feridas

Os meus ouvidos estão vedados

Então não ouço os teus apelos

Teus gemidos de dor não apiedam-me


Entre um curativo e outro

Tomo sorvete

E você faz qualquer prece


De cansaço o dia escurece

E nós dois dormimos um mesmo sono

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OS MEUS PROBLEMAS

Sentado aqui no macio conforto da sala
Sou vitrine para as nuvens calmas
Que passam e me olham de soslaio

Também para um coqueiro carregado
Que aproveita o vento e balança altivo seus cachos
E ri da minha sede pois sabe que lá não subo

Por vezes voa algum apressado pássaro
Levando insetos no bico ou no papo
Ignorando que existo como ele do vagar

Permaneço abstrato tomado na preguiça
Ciscando palavras no terreno do alfabeto
Enquanto as acho para mais alguns poemas

Nada mais passa pela minha janela fechada ou aberta
Senão a natureza de cada coisa verdadeira ou falsa
E o tempo impiedoso desprendendo meus problemas

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EU ABUSO DE CERTAS CORES


Eu abuso de certas cores

Do vermelho por exemplo

Sangro-lhe pelas veias

Eu não acho feio que o mundo de ocre me tinja

Mas odeio um mínimo corte no dedo


Assim pensam os parvos sobre as necessidades:

Desde que não me atinja o medo

Pouco importa se a peleja quebrou-se a vidraça

Pois me vejo na farsa do espelho


Oh ruas sem saídas destas nossas soturnas cidades

Vigiai para que não perambulem por elas

Nenhum coitado sem graça sem remédio sem paga

Depois o conforto se areja


Mais logo quem sabe esteja

Nos braços do descanso quem deseja

Ouvir a lucidez do silêncio


Enquanto prosperar qualquer forma de inveja

O amor nos console o choro pelo encanto


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A FÁBULA DOS NOVOS TEMPOS

PRIMEIRO DE MAIO DE DOIS MIL E VINTE E UM, e escuto gente dizendo que estamos definitivamente mergulhados na era digital e no tão propalado home office.

Que a pandemia em definitivo ensinou a todos, principalmente brasileiros, essa nova modalidade laboral. Trabalha-se à distância.

Sim, ninguém mais precisa sair de casa, cumprir horários, enfrentar trânsito, submeter-se a longos percursos utilizando os próprios veículos ou o transporte público. Que ampliou e permitiu um maior e melhor convívio familiar, pois pais e mães não se deslocam mais para as suas empresas, e por conseguinte, filhos estudam online; e isso permite interação ampla e irrestrita, reaprendendo a todos o quão saudável, necessário e gostoso é o convívio diário entre cônjuge e a prole.

É, a impressão que tenho é a de que quem assim pensa e age ou está gozando de um privilégio sobrenatural ou não está enxergando um palmo da realidade diante do nariz, e se está, tá tirando onda com a cara do povo.

Se a massa diuturnamente não sair pra rua para cumprir no mínimo 44 horas de jornada de trabalho semanal, perdão, mas quem irá lavar suas roupas, fazer seu almoço, colocar o bico da bomba de gasolina na boca do tanque do seu carro, entregar seu delivery, tirar o leite da sua vaca, obturar os dentes de seus filhos, trocar a lâmpada queimada do poste, recolher os enormes sacos com o lixo que você produz e larga ali fora do portão do seu quintal?

Estamos vivendo uma fome quase que sem precedentes. Uma desigualdade social inimaginável, um desgoverno epidemiológico sem fim.

Esse Primeiro de Maio tem muito mais que 24 horas. Tem a duração da falta de trabalho, a extensão das dores da alma, o comprimento do buraco na barriga e a insignificância de mais um boleto vencido sem condições de ser pago.

Haverá home office enquanto houver quem sustente com as próprias mãos e salgado suor, o tráfego que mantém plugados os gigabytes de sua internet.

Se não é trabalho será falso, senão ócio.


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GOSTO DE VIVER


Quanto gosto a gente faz do viver
Notícias: o homem perde o paladar
Não se sente mais cheiro algum
Cegos seguem por corredores sem fim


Eu caminho surdo a tais pressões

Pois gosto da vida e seus sabores
Dos odores dos segundos e das cores
Ainda que haja muros e escuro esteja


Procuro nos espaços que possuo

Sentir o coração intenso amar
Tudo o que essa visão me entrega


Assim encontro precioso sentido

Em todo gesto em cada regra
E o mundo a mim jamais se nega

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PERTO DE TI


Procura

Pois perto de ti
Sempre poderá haver um encontro
À tua espera


Todos os dias partimos
Eternos buscadores sem asas
Ainda que em desencantos
A vida é essa valsa sobre as ondas
Esse balanço submerso
Essa mistura de ritmos


Encontre
Pois perto de ti
Sempre poderá haver uma espera
À tua procura

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DIACHO DE FOME

Diacho de fome que arde no bucho
Que rebaixa o bicho
Que o torna insano como qualquer homem
Um pária sem pátria sem rumo e sem nome
E vice-versa

É fome de verso diversa sujeita
O peito lhe aperta por estar na sarjeta
Sem voz e sem teto sem afeto e sem graça
Não importasse praça quintal ou casa
Nem absurda conversa

O mundo separa-nos entre o farto e a falta
E a alma se despe do corpo se mata


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BARBAS DE MOLHO

Certas coisas nos cegam tão de repente que quando abrimos os olhos ficamos pensando: como não as vi! Sim, tem situações inusitadas ou repetitivas que sempre nos pegam de surpresa. Quando alcei um ano após minha primeira metade de século de vida, prometi a mim mesmo que a partir dali não assustaria com mais nada. Venho tentando fazer isso já há dez anos, mas por mais autocontrole que se tenha, há por vezes (e muitas vezes, por sinal), algum espanto na curva. Prova de que estamos sendo submetidos constantemente a novos aprendizados. O desconhecido deve ter para todos, o significado de novos conhecimentos adquiridos. O inusitado precisa, portanto andar de mãos dadas com a nova realidade, sendo que essa nova realidade necessita de constante esforço para tornar-se parte do cotidiano.

Filosofices a parte, acontece que me considerava tranquilo, tomando os cuidados básicos de fuga da covid-19, com a finalidade de me preservar para preservar os que com os quais convivo e me cercam dia a dia. E assim driblando a rotina, um dia após meu aniversário levei satisfeito e cantante, meu braço nu de encontro a ponta de uma agulha que me faria a gentil fineza de introduzir em meu organismo a primeira dose da Oxford.

Agora estou aqui leso, dolorido, enjoado, e o pior de tudo, fingindo vender saúde para não preocupar quem me cerca.

Mas os sintomas são leves ante ao que vejo noticiar sobre as mazelas que essa pandemia provoca a cada fração de segundo por todo o mundo. Então, não é motivo de queixas ou reclames o que venho agora fazendo, mas sim, um nítido exame de consciência.

Primeiro, não sei no que isso vai dar e como irá acabar. Se isento e imune dos malefícios do sars-cov-2 ou pego pelo rabo (braço) e ao invés de inoculado, agente e distribuidor desse desgraçado vírus. Não sei se me isolo ou continuo a fingir até que esses sintomas sumam ou me debilitem por vez. Que estranha sensação de impotência total. E nem foi na curva do caminho, foi na retilínea estrada com total visibilidade e previsibilidade de sucesso.

Antes que os olhos apaguem por vez, pois nem estou conseguindo mirar mais a branca tela do computador, registro esse susto que nem sei onde irá ser publicado, para que não desperte qualquer preocupação em quem me ler.

Aguardo agora a segunda dose, que daqui há três meses virá. Depois disso tudo, espero poder sorrir do tropeço e dar risadas contigo comentando estas linhas. Porém, se der zica, não chore por mim!

Fui.


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MINHA VIDA

Semana passada resolvi fazer o registro de um novo e-mail, pois o que uso por bom tempo, ao longo dos dias foi sendo invadido por um turbilhão de mensagens de conteúdos estranhos, cuja caixa de spam já nem consegue mais absorver ou distinguir quem é quem nessa jogada multilíngue da virtualidade moderna. Culpa minha, certamente, que andei descuidado ao deixar portas abertas para os sites espiões fartarem-se com seus famigerados motores. Acontece que acabamos vinculando ao endereço eletrônico principal, celular, computador, e as contas das redes sociais. Assim, qualquer curiosidade que nosso permanente consumismo resolve pesquisar na internet, segundos depois dezenas de ofertas sobre determinados produtos ou serviços são despejadas na caixa de entrada e permanecem ali ramificadas e debulhadas em tantas outras mais similares.

Mas enfim, já estou usando um novo e-mail, e esse ainda limpinho e desvinculado dos principais avaros portais. E não se preocupem, pois o antigo faz automaticamente um redirecionamento das mensagens autenticadas, o que não me fará perder o contato de ninguém que me tem escrito, e deverá me manter a salvo, por enquanto, dessa disputada guerra invasora.

O que me chamou a atenção, no entanto, e quero fazer notar aqui pra vocês, foi justamente o momento de fazer o cadastro com os dados pessoais para obter a nova inscrição de e-mail. No campo Nascimento, coloquei obviamente onze, depois abril, sendo que no item Ano, marcava no automático, 2021. Então fui rapidamente retroagindo o calendário há algumas décadas para trás. Uma, duas, três décadas... quatro, cinco, seis: 11/04/1960! Achei legal isso.

Então ao invés de avançar para o próximo campo do formulário, resolvi brincar um pouco com os meus bem vividos anos. Desta vez fiz ao contrário: 70, 80, 90, 00, 10, 20...

E de novo: 21, 10, 00, 90, 80,70, 60 - onde tudo começou.

Não aguentei, fui para o Word, e dei o seguinte título ao documento:

MINHA VIDA

  • 1960 -
  • 1970 -
  • 1980 -
  • 1990 -
  • 2000 -
  • 2010 -
  • 2020 -
Então à frente de cada bloco de dez, comecei nos subitens, a identificar algo relevante em que a vida me marcou e tomou por especial minha atenção - escola, casamento, filhos, neta, irmãos, amigos, sucessos, empregos, conquistas, sufocos, perda de minha Mãe, mudanças, livros... E por aí afora, listando no meio desses sonhos, toda a realidade dos 61.


Certa vez li uma declaração que o diretor teatral Aderbal Freire-Filho fizera à Folha em 2008. Ele confidenciava que tinha o hábito de anotar coincidências numa agenda, na esperança de desvendar o mistério da vida.

Bem, posso concluir que não tive nem tenho essa ousada pretensão de Aderbal. Mas, após esse doce exercício que me custou bons momentos de recordação mnemônica, de uma certeza não abro mão em declarar e confessar a quem interessar possa:


- Eu existo. Meu Deus, como sou feliz!!!


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O HÁBITO DA ESCRITA

Eu me preparo para escrever algo novo, como quem arruma as malas para a próxima viagem. Às vezes uso um simples lápis meio sem ponta, por vezes alguma caneta falha, e na maioria delas o laptop, cujo sistema operacional normalmente trava. Sem contar que de repente, lápis, caneta e computador estejam funcionando e intactos, mas cadê papel para rabiscar a palavra ou tela para acompanhar diante dos olhos cada caractere digitado. Digo isso com o objetivo de confidenciar o sofrimento que é encontrar as ferramentas certas para fluir assunto e inspiração diariamente. Haja ansiedade!

Sempre tive esse mesmo problema ao saber que devia sair de casa para um passeio ou nova viagem qualquer. O que levar, para quantos dias, como estará o tempo, quem irá comigo ou encontrarei, e o que fazer.

Essa expectativa é quem sempre remexe as emoções. Porem depois que se ganha estrada e velocidade, o traslado se torna felicidade, e aí é aproveitar o deleite e toda a magia que a escrita impõe. Porque após quilômetros, parágrafos ou estrofes e frases, reler e dar-se à leitura é a mais prazerosa das conquistas. Veja você, então, como nascem os textos, por mais simples que venham a ser, mas na mais pura das vontades e intenções.

Quando ainda criança, o maior conforto que recebia antes da partida, eram os olhos de minha mãe vigiando as minhas tralhas. Seu olhar me acompanhava por todo o trajeto. Aquelas pupilas cabiam certas cuidadosamente dentro das minhas malas, e preenchiam todos os cantinhos. E até hoje tem o peso exato do que minhas forças suportam carregar.

Por isso sempre achei oportuno e necessário fazer de cada parágrafo uma necessidade particular. Assim, tanto estou pronto para um novo destino como para outra redação, desde que me permita voar.

Foi assim que conheci o mundo e passei a criar as minhas próprias historias. E é assim que arranco de mim as mais doces emoções que a arte propicia, sem sequer sair do lugar.

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QUADRO DE CHEGADAS

Dero-Dero desceu da velha bicicleta e atravessou o enorme corredor, depois subiu os trinta e três degraus até o ultimo patamar da íngreme escada, onde havia preso na parede lateral, um incrível painel aceso. Como fosse num moderno aeroporto, anunciava-se ali, porém em absoluto silêncio, o quadro de chegadas. Dado a pandemia, os nomes se sucediam muito rapidamente, exigindo literalmente um sobrenatural esforço do leitor para decifrar e entender a relação dos neófitos a serem iniciados naquela Ordem do Dia.

Ficou ali recostado por um longo tempo com os olhos pregados naquela fria tv. Apesar de serem letras garrafais, exigia muita concentração e paciência, mas era o único modo de confirmar - como se diz em bom português - 'quem vem lá!'.

Na verdade, quem viu primeiro o nome dele, foi Vavá, que casualmente por ali passava, que contou pra Mosquito, que informou aos demais. Mas como já subiu com certa fama de exagerado, ninguém lhe deu muita atenção. Acharam todos que estivesse zoando.

- Imagina se ele virá tão cedo, vocês estão de brincadeira - argumentou Estrela - Ele irá almoçar antes da partida.

Heraldo até se preocupou, mas no fundo também não deu muito crédito, achando que fosse léro de Etelvá.

Assim, como era tradição e sempre acontecia, disputaram na purrinha quem devia conferir finalmente a veracidade daquela informação.

Ah, não deu outra, sobrou para Aderaldo. E estava ele ali naquele momento, na incumbência de certificar-se de que realmente ele faria parte da leva dos Aprendizes daquele dia.

Havia almas de todos os lados, dos mais respeitados, distantes e incríveis Orientes. A relação de nomes não estava em ordem alfabética, mas sim era exibida por horário de chegada.

A lista fora montada por um consorcio de Lojas que recolhia os dados cadastrais dos espíritos, e fazia a divulgação, para que os demais obreiros tivessem noção de quem viria. Haviam sim recebido a confirmação da possível chegada, porém não era definida ali na mensagem, a hora e o dia. Alguns resistem mais, outros chegam até mesmo a antecipar - aí virava correria. O fato é que o fim da viagem pudesse acontecer naquela Sessão, antes do meio dia. E para isso alguém precisava ficar de olho no telão. E, diga-se de passagem: era exibida a hora exata da chegada. Uns, mais pecadores, sempre demoravam mais em trânsito, no curso da viagem. A dele, no entanto e como previsto, foi num zás.

- E não é que Vavá estava certo! - pensou Dero-Dero ao ver prevista e confirmada a chegada daquele irmão, cujo nome já aparecia na tela.

Saiu apressado, praticamente correndo pela longa escada. Atravessou de volta o imenso 'corredor de anúncio da morte'. Não, desculpe, 'corredor de chegada para a nova vida'. Da morte seria para os que ficamos ainda mais um tempo por cá.

Alcançou o incansável Zé Mosquito que jamais parava de caminhar pelas calçadas das nuvens, e ofegante, tornou a apear da surrada bike:

- Sim Zé, chega hoje mesmo, daqui a pouco, antes do almoço. Tomara que para o ágape tenha moqueca! - completou num largo sorriso...

E na hora exata de uma quinta-feira destas - coincidentemente, dia de reunião na FUPS - aqueles valorosos Mestres reunidos - Aderaldo, Heraldo, Estrela, Parracho, Pedro Faria, Etelvá, Oscarzinho, Zéquitoki, João da Sunga, Joselito Vieira, Manoel Carneiro, Zelito Lima e Bertinho - todos devidamente paramentados, recebiam mais um eterno aprendiz - Tonhão - na porta do Oriente Eterno, do lado interno do Céu, e o conduziram escoltado enfim, ao Altar dos Juramentos, sob as barbas de Arão, aos braços do SADU, para descansar de sua feliz e bem sucedida jornada na Terra.

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CANÇÃO DA GENEROSIDADE

Embriagai-vos de generosidade
Pois é chegada a hora de serdes abundantemente fraternos
Mas de uma fraternidade clara, translúcida
Imprópria para os inconvenientes


Lá no sertão da alma
Quando alvorece a complacência
Doar aflora todas as definições de humanidade
E nos tornamos luminosos e iluminados
Preciosos e mais livres até no olhar


Doai do que vos farta
Fartai-vos dessa singela alegria
Afinal ainda é manhã e a hora propicia


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CAMINHOS

Moro tão fora do mundo
Que a madrugada me traduz nos carinhos da arrebentação
E o pensamento me salga o sono de alga e areia


Depois quando nasce a luz na leveza do dia

Os sonhos fazem tanto alvoroço entorno das coisas
Que até os caminhos aquietam para ouvir a sinfonia


Quanta certeza teria eu para estar aqui

Pareço um enorme rio que repousa em seu leito
Afagando um afluente recém chegado a seu ninho


Mas sou inconstante como plumas ao vento

Mergulho e desassossego do sono profundo
E voo pelo mar afoito sem qualquer apego
Levando-te nas asas pelo gosto de andar sozinho



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ESPELHO


Tentaram mudar o mundo por estar velho
Vãs tentativas desconexas
Fizeram o planeta sentir a perversidade
De tanta gente errônea desenformar a terra


Agora de conversa em conversa

Tentam reestruturá-la porque a visão é outra
Mas o homem reflete essa desestrutura
E se enquadra e depara sem argumentos
Com a própria cara fora do espelho


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O CASCO DESSE NAVIO

Quisera
Que a mesma vela que nos levará para outra quimera
Navegasse sob a intensa luz de um só pavio
Esperando derreter a cera sob um sol de primavera
Imerso nas aguas de qualquer um lago
Por onde deslizasse o grosso casco desse navio


Seguíssemos talvez
Ainda que seguidas vezes diluídos em rios
Ao invés de consumirmos em cinzas nossos pedaços
Soldássemos as fendas desse calado
Equilibrando o corpo à sombra do círio
Revestíssemos de coragem abóboda e lastro
E simplesmente de novo partisse


E se lá na frente assoreasse
Ou se tombasse o mastro sobre delírios toscos
Enxergássemos ainda que febris desastres
Por vieses e enroscos
A fugaz serenidade face a face

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DEUS TRISTE

Deus triste contempla os desacertos de seu povo
Que ao mesmo tempo em que clama por piedade
Faz da liberdade um descalabro homicida


Ele persiste em contemplar os desacertos de seu povo
E chora aflito em cada alma que perde o corpo à morte
A cada alma que a morte leva sórdida a vida


Desta vez não teve ânimo para abandonar o túmulo
Não ressuscitou - preferiu estar dentre os abatidos
Quedou-se deprimido ante tanta aflição


Deus triste permanece deitado recolhido em seu nicho
Pasmo sem ação ante a feracidade dos ladrões e algozes
Que desmantelam os princípios básicos do viver


Deveria estar feliz por receber essa urbe em seu reino
Mas não faz sentido tanta gente ao mesmo tempo fenecer
Deus chora triste e solitário - por mim e por você

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RESTAURAÇÃO

O altíssimo soberano - aquele que nunca dormiu
Envelheceu desconhecendo o sono
Cochilando apenas recostado à necessidade
De manter-se peremptoriamente acordado
Partiu solidário para longa odisseia
Antes que o caos retomasse o infinito

Assim reimplantou moradas entre quintais
Presas às balaustradas e cercas dos caminhos
Junto aos pomares à beira dos frágeis riachos
Cujas águas inquietas e rasteiras
Voltaram seguir em busca dos sonhos
E das inconstâncias dos oceanos

Vigiou os conceitos das plataformas
Erguidas à procura do destino ideal
Mantendo-se atento aos mínimos gestos
Dos astros no macro espaço entre as esferas
Que circundam e orbitam os planetas
Diante das plateias angelicais

Resguardou o porvir de todos os povos
Recolhendo as possibilidades do desprazer
Eliminando as desventuras da realidade
Convencendo a natureza de que é preciso
Tão quanto necessário e premente
Zelar atento aos ditames dos céus

Soldou os hemisférios circundando os mares
Realinhou as geleiras nas montanhas verbais
Reposicionou novamente todas as espécies nos habitats
Intercalou com noites os claros do sol nascente
Retornando a espera pelo amanhã e depois
O sublime exercício nato da paciência diária

Aí sim ao final da estanque tarefa de restauração
Na manhã do bilionésimo milênio ou algo assim
Contemplando a morada completamente refeita
A missão cumprida e finda a jornada em seu jardim
Descansou por sete dias em sono profundo
Num belo domingo como humano e não deus

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LÁBIOS

A agua e o ar se movimentam

O sopro no vento

A onda no mar

Um voa meus sonhos

Outro afaga os ais

E todos se encontram

Num único porto

No limbo dos dentes

Nem longe nem perto

No abismo do olfato

Batendo nas bordas

Onde os lábios margeiam

E a úmida língua

Bailando na boca sentindo sabores

Sacia a alma

Alimenta o corpo

Respira em poesia

Inspira depois

Acaricia

Repousa

E a alma desposa-me


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RESSURREIÇÃO

Para onde irá tua alma?
A minha permanecerá


Não irei a lugares
Nem subirei patamares
Estarei retilíneo sepulto com meu corpo
Onde dele dependo para viver a mostra do que penso
Dormirei por séculos entre os pecados cometidos
E os deslizes perdoados pela mera bondade do acaso


Assim sobreviverei atemporal ainda que a carne debulhe

Mesmo que esfarinhem os ossos
Sobreviverei porque o íntimo permanecerá
Desde que tua generosidade
Comigo se apense e a piedade partilhe
Onde os nomes descansam dado o privilégio de amar


Mas ao raiar do décimo milênio despertarei
E ai quem sabe poderei por fim descansar


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SOBRE AS CAMAS

A vara que ergue a corda
Estica o varal até a altura do sol
Para que o lençol seque e quare
Um pouco mais alvo debaixo do céu
Permanecendo hasteado no alto do pau
Livra os arrastos da límpida barra no chão

E preserva o mundo exposto de cada um


A moça contempla o acinte do vento que acorda

Esvoaça o tecido e embandeira o quintal
Então penso que todos os dias lavam-se roupas
Onde se apagam os rastos deixados de suor e amores
Apenas para estender as cores e enfeitar o portal
Por onde transitam prazeres e dores
Vestígios dos nossos sonhos e dramas


O mundo é esse circo irreal

Enquanto descortina o próximo segundo
Achamos que o envelhecer amarrota as camas
Mas na verdade revive as fibras e o ideal
E renovam-se os panos enviesados
Enternecidos por vivas chamas


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INDIGENTE

O santo torrão onde pisa meu pé pode não ser meu
Pois nenhum palmo desse abençoado solo sequer me pertence
Não se lavrou em meu nome nenhuma escritura pública
Em que me ateste a posse de qualquer morada ou cerca
Não grilei gleba alguma no radar da noite nem a herdei
E nem de ti o mundo tomei para que desolasses sem chão


Plantei sim árvores inúmeras nas beiras das plagas

Semeei o verde ainda que tuas mãos devastassem as eiras
Ajudei-te a recolher os grãos e preservei tuas sombras
Transmutando as poças em riachos viçosos diversos
Que seguem o curso no entorno da orla de versos
Juntando as fronteiras longínquas desta nação


Sou eu agente dessa massa que se orgulha e se ampara

Se te envergonhas não seja de mim ou da raça
E sim da oculta imagem que te reflete o espelho
Pois a terra que é tua é o lugar que me abraça
Ainda que seja eu indigente e não comungue dessa hóstia
Prossigo forte país feliz altaneiro - sou eu povo tua pátria


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ETAPAS

Considero paixão cada etapa vencida

Mas para que possa vencê-las

É preciso lutar essa luta aguerrida

E dela entender os ditames do tempo

Cada oportunidade e a rotina da vida


Lá de cima da montanha

De onde possam vir teus medos

Ouço chamados contínuos e apelos

Para que eu chegue ao cimo

E contemple a paisagem


Certamente seja esse o segredo do vento

Varrer-se na pedra sem perder-se da nuvem

Inda que não as tenha entre os dedos


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IMAGINA

Imagina enfim
Se a luz é ou não companheira das sombras
Pois tantas vezes seria a noite quem iluminaria o dia


Desapercebido porém

Passando de soslaio pela penumbra me iludiria
Não fosse a certeza de que esses raios são apenas sobras
No extenso veludo negro da penumbra
Onde o sol morreria


Apenas pelo gosto de ressuscitar no brilho de cada estrela

Amanhã a tarde intensa poderá predizer-se ainda mais bela
Desde que eu a olhe pelos olhos da poesia


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