DISCURSO DE POSSE NA ALB

"Eu canto porque  / O instante existe

E a minha vida / Está completa.

Não sou alegre  / Nem sou triste  / Sou poeta"


Pretensões à parte, porém calcado no poema Motivo, de Cecília Meireles, inicio agradecendo o Altíssimo por me conceder a coragem e a ousadia da perseverança na literatura. Trago comigo a séria convicção de que não chego a ser, nem tenho pretensões da intelectualidade, mas unicamente em continuar a ser autor de poesias. Ainda assim atrevo-me a estar aqui com o objetivo de somar junto aos doutos e ilustres pares. Considero-me um humilde artesão dos versos, sendo minha maior matéria-prima, portanto, a palavra. E como bem diz Victor Hugo, "As palavras têm a leveza do vento e a força da tempestade". Assim, o que produzimos por vezes são brisas e por vezes, dedos que calcam feridas. Porém sempre justos e próprios pela grandeza da arte.


Parafraseando o poeta Carpinejar: 'Todos somos poetas, entretanto alguns são autores'. Em assim sendo, respeitando a ótica de Carpinejar, além de poeta, também me atrevo a dizer que sou autor de poemas. E é por essa escola que venho me especializando através de ferrenho e continuado exercício da inspiração. E por assim ser, mais um sonhador; e por ser assim um mero aprendiz na labuta esmerilada das palavras, acredito-me pronto a também passar a colaborar com esta Casa em prol da Cultura, da Educação e dos bons costumes à nossa Sociedade junto às Senhoras e Senhores Acadêmicos, fazendo jus aos votos e à confiança que mui generosamente me foram dados.


Confesso que o cotidiano me tem proporcionado gratas e inexplicáveis saudáveis surpresas. E poder estar aqui em vosso meio hoje me é uma das mais engrandecedoras conquistas e das mais prazerosas alegrias alcançadas. Por isso, repito, sou muito grato à vida, a Deus, à família e aos senhores, partícipes desse meu cotidiano.


Quando ainda menino e pela juventude, muito escrevi, preguei, falei, apregoei poesia, caminhando por essa seara bastante espinhosa, porem deveras gratificante. Nasci ha dois mil quilômetros do mar, porém cantando com muita propriedade as belezas do Centro Oeste Brasileiro, minha origem, com muita transparência e sensatez. Tenho impregnadas nas ruas da minha amada Três Lagoas e Guaraçai, os ingredientes do Oeste Paulista e do Mato Grosso do Sul - uma ferrenha militância nas Letras, através de Jornais, Livros, Revistas, Escolas, Universidade, Instituições e sólidas parcerias e amizades sempre ainda presentes e até hoje muito altivas. Foram bons tempos falando de poesia e espalhando poemas por onde andei.


No final dos anos 80, passando a residir na Costa do Descobrimento, fui eu, literalmente falando, o descobridor da felicidade plena ao ter tido o privilégio de ter sido tão bem identificado e criado meus laços e espaços entre vós, portosegurenses, gozando do afago nativo dessa gente baiana. As últimas três décadas, portanto, passei incubando valores literários os quais vieram à tona novamente e que, repito, graças à generosidade dos meus pares, me trouxeram até aqui. Confesso que até cobicei esse momento na Academia, mas em face a tanta intelectualidade existente nessa cosmopolita Cidade de Porto Seguro, não sentia acontecer tão rápido e hoje. Entretanto o Supremo Arquiteto do Universo assim o faz realizar. Por isso minha eterna gratidão a todos.


MEU PATRONO - CADEIRA Nº 18


Destarte, ao tomar posse da Cadeira de nº 18, reformulo meu compromisso com a literatura, prometendo honrar os ensinamentos do meu patrono LUIZ GONZAGA PINTO DA GAMA, sobre o qual passo agora a discorrer:


Quando me fora dada a opção de escolha da Cadeira 18, me chamou a atenção a vida e obra desse baiano nascido no dia 21 de Junho de 1830 na capital Salvador. Luiz Gama foi um rábula, orador, jornalista e escritor dos mais respeitados e admirados de sua época. Nascido de mãe negra africana livre, vinda da Costa da Mina (correspondente ao Golfo da Guiné, Litoral da África Ocidental) que ganhava a vida fazendo quitandas, e de um fidalgo português que vivia em Salvador, cujo nome o poeta nunca revelou. Em 1837, Luiza Mahin deixa a cidade e parte em direção ao Rio de Janeiro, ficando o filho aos cuidados do pai. Este, segundo o próprio Gama relata, era um homem de posses, apaixonado pela pesca, pela caça e principalmente pelas cartas. Vivia de uma herança que havia recebido em 1838 e, dois anos depois, já se encontrava em plena miséria.


Em novembro deste mesmo ano, portanto aos dez anos de idade, o menino Luiz Gama foi levado pelo pai a bordo do navio "Saraiva", e lá vendido como escravo. Dias depois, ao desembarcar no Rio de Janeiro, foi levado para a casa de um negociante português que negociava escravos sob comissão. No mês seguinte, foi novamente vendido, junto com um lote de "cento e tantos escravos", ao "negociante e contrabandista" Antônio Pereira Cardoso, que os levou para São Paulo.


Porém os escravos vindos da Bahia eram tidos como "desordeiros" e "revolucionários", devido ao marco histórico que foi a Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador em 1835, da qual a mãe de Gama, Luiza Mahin, teria participado. A Revolta, portanto, foi um levante de escravos de maioria muçulmana na cidade de Salvador, capital da Bahia, que aconteceu na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835. Os Malês eram negros de origem islâmica, que organizaram o levante. Depois disso, os escravos oriundos dessa cidade eram preteridos pelos compradores, como deixa transparecer o depoimento do poeta: "Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu 'baiano'".


Sendo assim mais uma vez renegado por ser negro e pela origem, Luiz permaneceu por mera conveniência do destino, na casa do senhor Cardoso, onde foi encarregado dos serviços domésticos, tendo aprendido com outro escravo, também baiano, o ofício de sapateiro. Ali se estabeleceu, aos dezessete anos de idade, o primeiro contato de Luiz Gama com as letras, através de um hóspede que viera de Campinas para a capital, com o objetivo de estudar.


Em 1848, Gama fugiu da casa de seus senhores, tendo conseguido, logo depois, documentos que confirmavam a sua liberdade, uma vez que era filho de uma negra liberta. Em 1856, foi nomeado amanuense da Secretaria da Polícia, onde serviu até 1868, quando foi demitido por "bem do serviço público". Para esclarecer o motivo real da demissão, o poeta faz a seguinte confissão em carta ao amigo Lúcio de Mendonça: 'A turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas ideias, e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, a alforria de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os reis.'


Em 1859, Gama publicou Primeiras trovas burlescas de Getulino, no qual consta o famoso poema "Quem sou eu", mais conhecido como Bodarrada, no qual expõe o preconceito de cor na sociedade brasileira. O poema foi escrito em resposta ao apelido que os intelectuais da época tentaram lhe impor: bode - termo usado de forma depreciativa para designar os negros. Também como jornalista, Luiz Gama teve uma atuação política bastante intensa: foi aprendiz de tipógrafo do jornal O Ipiranga, e redator do Radical Paulistano, no qual colaboraram, entre outros, Castro Alves, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Foi ainda responsável pela redação de O Polichinelo - primeiro periódico político satírico da cidade de São Paulo, o que faz Alberto Faria atribuir a Luiz Gama a fundação da imprensa humorística paulistana.


Nos anos 60, o advogado autodidata Luiz Gama se esforçava para tratar dos casos de escravizações ilegais e de abolições individuais e coletivas do Estado de São Paulo. Costumava dizer: "Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados; não pretendo lucros, não temo represálias". Segundo consta, Gama teria sido o responsável direto pela liberdade de aproximadamente quinhentos escravos.


Além de advogar, Gama realizava conferências e publicava polêmicos artigos nos quais explicitava seus ideais abolicionistas, motivos pelos quais era perseguido e ameaçado de morte. Liberal exaltado, foi o primeiro negro brasileiro a lutar contra os ideais de branqueamento da sociedade e pelo fim da escravidão. Mesmo debilitado pela doença, saía carregado em uma maca, para atender seus clientes desejosos da liberdade. Faleceu em São Paulo, em 24 de agosto de 1882, deixando uma emocionante carta-testamento ao filho, que se configura para nós, seus leitores de hoje, como vivo exemplo de homem público e literato que, mesmo diante das vicissitudes da vida, não abandona seus ideais.


Existencial, num de seus nobres poemas indaga:


Quem sou eu?


E ele mesmo responde:
Que importa quem?


Sou um trovador proscrito, Que trago na fronte escrito Esta palavra - Ninguém! -


NOSSO COTIDIANO


Meus queridos: perdoem se acima tratei do lado um tanto sofrido e melancólico do Poeta Luiz Gama, digno patrono da Cadeira 18 desta Academia de Letras de Porto Seguro, da qual agora passo a ocupar. Mas assim o fizera no intuito de mostrar o quão a vida nos é por vezes ingrata, e o quanto diuturnamente necessitamos encontrar maneiras de dar a volta por cima, procurar reconstruir espaços mais dignos para nós e nossos filhos, e até contar com a sorte, ainda que seja a duras penas. Descrevemos acima, portanto um cenário de dois séculos atrás.


Porém quero citar neste momento, o jornalista Leonardo Sakamoto, em uma de suas recentes colunas no Uol deste Janeiro do ano do ano de 2020, século XXI:


" Vivemos ainda hoje, em pleno século XXI - um contexto de ultrapolarização política. Nele, desumaniza-se quem defende posicionamentos diferentes dos nossos, não reconhecendo que essas pessoas tenham os mesmos direitos constitucionais. Pelo contrário, defende-se que sejam caladas e punidas por pensarem diferente. À força, se necessário. Passando por cima das leis, se preciso."


Sem querer me alongar, faço apenas observar que os anos, as décadas, os séculos e gerações se sucedem e não conseguimos aparar as arestas, fazer as aparas do preconceito reinante num país tão grande, tão rico, tão oprimido e ao mesmo tempo opressor como é o nosso amado Brasil. Não é lástima, porque não choramos nem jamais lamentaremos em vão, e sim observações cabíveis a um grupo pensante e ativo como o nosso.


De uma coisa estamos convictos: a arte liberta, fala, é ouvida, demove, comove, impõe, modifica e nalgum momento renasce, floresce e produz seus frutos. Por isso é tão profusa, por isso tão significativa na vida de todos nós. Se existe algo que devamos diuturnamente questionar de nossos líderes e autoridades e também de nós mesmos como sociedade civil organizada - é que nos deem conta da saúde da Cultura e da Educação pelo menos dentro dos quadrantes do nosso Município. Se nos indignamos com o índice de analfabetismo em nosso gigante Brasil, quantas vezes indagamos dos nossos próceres, quantos ao alcance dos nossos olhos ainda não possuem acesso à escola, a um livro, e são privados de um mínimo de conhecimento para que possam dizer-se alfabetizados! Lembro Mario Quintana, a despeito da importância da Literatura: "O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria." Infelizmente são tão poucos que assim procedem. Com dignas e raras exceções, nossa gente tem dificuldade de pensar porque utilizam-se poucos mecanismos de apoio e incentivo à arte e à cultura.


Em assim sendo e considerando, somando-me aos demais Confreiras e Confrades desta Academia, desejo e prometo continuar no ofício da palavra não na intenção de apresentar respostas prontas ou insensatas, mas sim permanentemente questionar o quão possível é, o que a vida faz de nós, afetos da alcunha dos versos, e o que com ela contribuímos para minorar sofrimentos e injustiças tendo a arte por instrumento, através do belo, da fantasia, da realidade, do poema, dos textos elaborados que possam instruir, comover, permitir alegrias e gerar vida pensante seja em qual for a realidade.


Que nossas letras possam até estarem chochas, nuas ou gélidas quando de certa forma incomodamos, mas jamais desconexas ou fora de contexto quando tantos pretendem que possamos a qualquer preço e custo cultuar a mudez. Afinal como diz Nietzsche, "Nada é tão nosso quanto os nossos Sonhos".


Continuemos a falar de amor, a cantar a vida em todas as suas nuances, a cultuar o belo, o prazer e a alma, e a também saber incomodar por meio dos severos pensamentos e do aclaramento das ideias e ideais, a sonhada liberdade, quando a realidade assim exigir de nós. Que através dos nossos versos, frases, parágrafos, cadernos, livros e palestras, consigamos disseminar o belo e a fantasia, ainda que a realidade por vezes se torne inóspita. Deus nos permita um longo tempo entre vós para que sejam plenos de realizações e graça, os nossos passos. Mas caso disso venhamos a ser privados, que ao menos "seja eterno enquanto dure (Vinícius de Moraes)".


Viva a arte, viva esse momento, vivamos todos com dignidade, decoro, honradez e humildade. Mas sobretudo, sejamos fraternos difusores da arte e necessidade do pensar.


Porto Seguro, 14 de Fevereiro de 2020.


Paulo Sergio Rosseto


Referências:
• eBiografia
• Wikipedia
• Arcodacultura
• Letras UFMG
Crie seu site grátis! Este site foi criado com Webnode. Crie um grátis para você também! Comece agora